Mykel Alexander |
Religião e
geopolítica no Ocidente contemporâneo
Num artigo publicado no The Occidental Observer (07/01/2017)
sobre o livro de Rusell Gmirkin, Berossus and Genesis, Manetho and
Exodus: Hellenistic Histories and the Date of the Pentateuch, levantou-se o
tema sobre consistentes contradições do Antigo Testamento, o que
significaria inclusive registros de pretensões históricas legítimas por parte
dos compositores do Antigo Testamento e de seus seguidores atuais sem, contudo,
possuírem tal legitimidade a corroboração nos estudos históricos e
arqueológicos.
Dentro das polêmicas atuais sobre o cristianismo, acentuadas pelas polêmicas
políticas, a relação entre religião e política passou a ficar mais viva. Dos
três grandes grupos cristãos, os dos católicos, ortodoxos e evangélicos, no
Ocidente tem mais relevância as divergências entre católicos e evangélicos, já
que os ortodoxos se situam mais no leste da Europa, Rússia e partes da Ásia e
Egito, locais de menos contato com o Ocidente.
Um novo fator tem entrado nas querelas cristãs, a saber, a corrente de
fiéis cristãos sionistas que apoiam o Estado judaico de Israel devido a
associarem tal Estado às profecias bíblicas. Entre os brasileiros talvez o
principal nome vinculado a esta nova corrente seja o publicista Olavo de
Carvalho. É inegável que a soma de fatores recentes, como o fortalecimento da
direita liberal e o cristianismo sionista, deu impulso nas eleições brasileiras
de 2018 nas quais alguns importantes vencedores estreitam relações com Israel.
Na realidade esse padrão tem sido recorrente nos governos recém-eleitos de
direita, como nos EUA, na Áustria e na Itália. É uma geopolítica que gravita ao
redor de Israel.
Mas
de onde é retirado o critério de voto dos eleitores dessa direita pró-Israel?
Muitos votos que foram para essa nova direita procederam das correntes
cristãs, católicas, evangélicas e sionistas, e são conquistas políticas
originadas de expectativas não só políticas, mas em grande parte religiosas.
Para quem não é completamente leigo sobre pontos básicos do cristianismo, sabe
que a Bíblia possui uma divisão fundamental, entre o Antigo
Testamento com escrituras exclusivamente dos israelitas e dos judeus,
as quais antecedem Jesus, e o Novo Testamento que traz conteúdo
atribuído aos ensinamentos de Jesus, embora muitos dos quais escritos e
difundidos por judeus, começando pelos apóstolos Paulo e Pedro, dois dos mais
importantes nomes para a formação da Igreja Católica, que, repito, eram judeus
e com inseparáveis laços afetivo à tradição judaica .
De modo muito simples a Bíblia em seu conteúdo apresenta um
suposto acordo de um personagem, Abraão,
com o deus, narrado no livro bíblico Gênesis
do Antigo Testamento. Este acordo é a
chamada Aliança (exatamente em Genesis 15, 18) que teria ocorrido entre
o deus do Antigo Testamento, Iahweh,
e Abraão o qual a partir de então
seria o ancestral patriarca do povo judeu[1], e aceito como ancestral
comum das tradições cristãs e islâmicas, daí o nome de religiões abraâmicas para
o judaísmo, cristianismo e islamismo. Para os cristãos em João 13,34 e no decorrer do livro Epístolas aos hebreus, a
Aliança do Antigo Testamento, que tinha sido iniciada com Abraão e reforçada
com Moisés, é substituída pela Nova
Aliança mediada entre Deus e os homens através de Jesus Cristo. Para os
islâmicos as alianças anteriores entre Deus e os homens, mediadas por Abraão,
Moisés e Jesus Cristo, foram, decido ao desgaste ou deturpações, perdendo o
sentido legítimo através do tempo, e teria sido através de Maomé que os
ensinamentos de Deus foram retificados em seu sentido original no Alcorão.
Também, quem não é totalmente leigo sobre a tradição cristã sabe que as igrejas
evangélicas preconizam o Antigo Testamento sobre o Novo
Testamento enquanto que a Igreja Católica preconiza o Novo Testamento sobre
o Antigo Testamento. Claro que essa posição adotada pelos
evangélicos os fazem muito mais próximos aos judeus do que faz a posição dos
católicos. E, de modo simples, dentro das polêmicas que conjugam religião e
política encontram-se no Ocidente os católicos como os cristãos mais críticos
ao Estado de Israel ou até mesmo judaísmo internacional (isto é, da coesão
judaica incondicional apesar da condição de diáspora que permite aos judeus
viverem em culturas diferentes). Na verdade, é comum os católicos, e também os
ortodoxos, falarem que Jesus é o rompimento com o judaísmo. Mas será mesmo que
é?
Como é muito nebulosa a reconstrução dos primórdios do cristianismo, pularei
aqui o que teria exortado ou não Jesus antes de surgirem supostas alterações em
sua mensagem original, pois no decorrer dos séculos muitas disputas
doutrinárias e muitos ajustes, compilações e exclusões de textos ocorreram, e
isso é uma marca patente dos concílios, onde e quando se formalizavam e
oficializavam as doutrinas e escrituras, e, portanto, não me precipitarei em
afirmar ou negar que alguma passagem é de Jesus ou que seja fidedignamente
desenvolvida sobre ensinamentos de Jesus, e irei direto a uma passagem que escolhi
como ponto de partida para dar início à
reflexão se o cristianismo, como instituição religiosa que desenvolveu-se na
forma de igrejas, é uma ruptura com o judaísmo como alguns cristãos afirmam.
A alegação de que a ‘salvação vem dos judeus’
Para fins de referência utilizei a versão em português da Bíblia de Jerusalém, que é considerada
uma das mais sérias versões devido ao rigor das traduções e do contexto
histórico feito por conjunto um conjunto multidisciplinar, que incluiu
teólogos, historiadores, arqueólogos entre outros especialistas. Cada livro da Bíblia de Jerusalém contou com um
especialista fazendo um texto introdutório, de contexto teológico, documental e
histórico[2]. Então para as passagens
analisadas aqui dei o crédito da autoria ao estudioso responsável pelo livro
bíblico em questão conforme o índice de ‘Principais colaboradores’. Um ponto
fundamental que a Bíblia de Jerusalém
traz é que enquanto muitas versões em português da Bíblia usam a palavra ‘Senhor’ para Deus no Antigo Testamento, esta versão bíblica utiliza o termo original Iahweh. Isto pode parecer inicialmente
irrelevante, mas tem significado profundo, uma vez que existe a polêmica de que
o Deus do Antigo Testamento é um e o
Deus do Novo Testamento, o que Jesus
se refere, seria outro. Isso por si só já bastaria para afirmar um tipo de
ruptura entre o Antigo e o Novo Testamento conforme será, em certa
medida, também examinado aqui.
No Evangelho segundo São João, 4, 22, temos uma passagem que
levanta questões muito importantes no que toca continuação ou ruptura entre o
judaísmo e o cristianismo. Nela afirma-se o seguinte:
Vós adorais o que não conheceis;
Nós adoramos o que conhecemos,
Porque a salvação vem dos judeus
O que se pode deduzir dessa passagem? Talvez num primeiro momento pode-se
deduzir que apenas procedendo dos judeus, e de nenhum outro grupo ou povo, o
bom caminho é obtido. Vamos então apurar um pouco mais o contexto.
É comum, como uma resposta pronta,
ouvir da boca dos cristãos que minimamente estudam a Bíblia alegarem que interpretar essa passagem de João como uma apologia aos judeus, seria
descontextualizar tal passagem, já que esta refere-se a estadia de Jesus na
Samaria onde teria conversado com uma mulher, e que, portanto, essa passagem
não seria algo generalizante, mas sim restrito ao específico contexto da
pequena comunidade da Samaria.
Todavia, segundo Donatien Mollat, talvez o maior especialista francês em
escrituras joaninas, essa passagem tem um simbolismo, mas que no meu entender
envolve depreciação de outras tradições sim. Em João 4, 18, Jesus adverte que a samaritana em questão tinha tido 5
maridos, e o tom é de reprovação, mas não exatamente por promiscuidade ou
instabilidade conjugal. Explica Mollat et
al.:
“Os cinco maridos simbolizam os deuses importados por cinco povoamentos pagãos [...]. O deus dos cananeus chamava-se Baal, mas esta palavra tornou-se o nome comum para designar todos falsos deuses. Ora, nas línguas semíticas, a palavra baal significa também ‘marido’, teríamos portanto aqui, um jogo de palavras não traduzido em grego, que seria retomado de Oséias 2,18-19, texto que anuncia a conversão da Samaria.” (Mollat et al., p.1851, nota b).
É totalmente compreensível que os
fiéis não tenham obrigação de conhecerem esse contexto que reúne ao
simultaneamente erudição e sensibilidade para interpretação simbólica. A moça
samaritana desta passagem representa, na interpretação alegórica acima, a
própria história da Samaria. É uma interpretação mais profunda, que passa
geralmente despercebida em relação a interpretação comum desta passagem, a
saber, Jesus, alegadamente judeu, não possui repulsa à uma habitante da Samaria
como era comum os demais judeus terem.
Trata-se do proselitismo de conversão geral em que visa simultaneamente
converter os povos, no caso, da Samaria, apagando, consequentemente, cinco
tradições pagãs. Em Oséias, livro do Antigo Testamento, o oráculo judaico de
Jeová (Yahweh) é quem está contra Baal, e o povo da Samaria teria de não mais
adorar Baal, mas sim Jeová, o deus judeu.
Então, vamos fazer a seguinte suposição, para vermos se há algum grau de
ruptura ou de continuidade entre judaísmo e cristianismo no seguinte exemplo: se
quando diante do Antigo Testamento o
cristão samário tem de escolher entre Jeová (Yahweh), deus judeu do Antigo Testamento, ou Baal; o cristão
grego entre Jeová (Yahweh) ou Zeus; entre Jeová ou Osíris; o cristão romano ou
entre Jeová (Yahweh) ou Júpiter, todos eles escolhem sempre Jeová (Yahweh), como
pode isso não ser uma conexão com o judaísmo? Há ao mesmo tempo uma deleção da
identidade nacional ancestral dos respectivos povos nessa situação, uma vez que
religião e a ordem social destes povos sempre foram interconectadas, e o
passado destes, de tempos ancestrais, passa a ser substituído pela visão de
mundo ancestral que há na narrativa do Antigo
Testamento. Assim o gentil ao ser convertido, paulatinamente vai sendo
desenraizado totalmente de suas tradições arcaicas. Junto com a nova religião
concomitantemente dissolve-se os vínculos ancestrais já que estes são inseparáveis
das religiões nas tradições dos povos. Deste modo ser cristão implica perder
teor da tradição gentílica e receber teor da tradição judaica.
Pode-se afirmar que o cristão admite, sem dificuldades, que as
escrituras judaicas colocaram que todos outros povos tinham falsos deuses na
antiguidade, antes do advento de Jesus, e que na antiguidade o verdadeiro deus
era o dos judeus e não o de quaisquer outros povos, e que o cristianismo adotou
totalmente este contexto. Para os cristãos o que os judeus colocaram sobre os
outros povos no Antigo Testamento é a
palavra final.
É nítido que a narrativa do Antigo
Testamento, em que os deuses dos demais povos que não o povo judeu são
deuses falsos, retomada em João é uma
nova carga contra as tradições não-abraâmicas, porém desta vez com o
cristianismo se valendo exatamente das mesmas premissas judaicas. Pode-se dizer
que tal postura cristã não é uma herança do judaísmo? As reprovações dos
cristãos à idolatria significam isso, tais reprovações possuem antecedentes nas
reprovações dos judeus à idolatria dos outros povos, conforme segue abaixo.
Na tradição grega a palavra daimôn
é relacionada com seres sobrenaturais ou sobre-humanas, que não são
necessariamente benéficos ou maléficos aos homens, existindo tipos de daimôn de ambas naturezas. Por exemplo,
Sócrates teriam um daimôn conselheiro
guiando sua busca pela sabedoria (ver Apologia
de Sócrates de Platão) e Júlio César também teria um daimôn que lhe acompanhava nos desafios em vida e foi-lhe fiel após
a morte em limpar-lhe a honra diante de seus assassinos (Plutarco, Vida de César, 69.2).
Na Septuaginta, a versão da Bíblia hebraica traduzida para o grego
entre os séculos III a.C. e o século I a.C., os tradutores judeus substituíram
vários termos gregos relacionados com a palavra daimôn na palavra plural daimonia.
Christopher P. Jones, da Universidade de Harvard, observa:
“A cristandade também tomou do judaísmo uma concepção de inumeráveis poderes do mal, frequentemente identificado com os deuses das nações ‘aos arredores,’ [...]” (Jones, p. 36).
Em Salmos 96.5 se diz, “Todos os deuses das nações são demônios” (daimonia)[3] e, explica Jones, esta
passagem dos Salmos:
“[...] tornou-se um texto favorito dos escritores cristãos. Os primeiros escritos canônicos da cristandade perpetuaram a concepção judaica dos deuses pagãos como ‘demônios,’[...]”(Jones, p. 37).
Deste modo, a palavra grega daimôn
que não tinha, de modo geral, a conotação de forças malignas, foi deformada
numa guerra ideológica entre os judeus e seus vizinhos, passando a palavra daimôn significar exclusivamente força maligna, e a mesma estratégia foi adotada pelos cristãos.
Ora, como não dizer que a passagem de João 4,22, não é generalizante se a parábola da mulher samaritana,
segundo a mentalidade cristã, se adapta sim em ser dirigida às nações dos
respectivos deuses anteriormente mencionados da Cananeia, Grécia, Egito e Roma?
É fora de dúvida que em relação a todas as tradições destes respectivos povos,
anteriores a Jesus, os judeus as colocam como tradições de falsos deuses, e
isto é uma postura que conta com a concordância do cristão, já que este
concorda na manutenção deste discurso judeu de que os demais deuses são falsos
deuses ou uma multidão de forças do mal, isto é, as demais nações são
governadas pelas forças do mal. Definitivamente é a edificação da postura de um
lado ser o totalmente certo e o outro lado o totalmente errado.
Eis agora a linha de raciocínio que permite admitir que a passagem “a
salvação vem dos judeus”, de João
4,22 é generalizante. Por exemplo, nada impediria um prosélito cristão fazer
uma parábola de que uma moça romana (simbolizando a própria Roma, como no
exemplo da moça samaritana que representa a própria Samaria) tinha tido três
maridos, e que isso significava, que Roma tinha adorado Zeus, depois Apolo, e
depois Hélio em sua forma Sol Invicto. O que importa para o prosélito cristão é
que, dando continuidade a mesma linha de pensamento judaico, todos os outros
deuses são falsos ou forças do mal, tenham o nome que for.
O Evangelho de Marcos põe na
boca de Jesus que:
“Ide por todo mundo, proclamai o Evangelho a toda criatura. Aquele que crer e for batizado será salvo; o que não o crer será condenado” (Marcos 16, 15-16).
São Justino (100-165 d.C.) diz ao prefeito de Roma que só a ‘fé’ dos
cristãos é a verdadeira.[4]
Santo Agostinho (354-430 d.C.) em sua Cidade de Deus, a sua maneira, após afirmar que somente Jesus é
intermediário entre os homens e Deus (livro 9, cap. 15), tenta dizer que os
deuses e os demônios/daimôn não teriam interação benéfica com os homens, tentando refutar o médio-platônico Apuleio (125-170 d.C.), de modo
a depreciar todas as divindades das demais tradições, e faz isso da seguinte
maneira, buscando autoridade em Platão, que mesmo entre os cristãos impunha
ainda grande respeito:
“Não é verdade o dito que o mesmo platónico [Apuleio] atribui a Platão:
Nenhum deus se mistura com os homens.” (Cidade de Deus, livro 9, cap. 16).
Contra a afirmação de Santo Agostinho, consta no próprio Platão o
seguinte:
“Deus não se mistura ao homem e todavia a natureza demoníaca torna possível aos deuses terem geralmente relações com os homens e com eles conversarem tanto durante a vigília como durante o sono”. (Banquete 203 a)[5].
Depois de proferir que os povos que não são da comunidade ‘eleita por Deus’,
isto é, que não são da comunidade cristã, como desamparados por Deus, por
dependerem de daimôn ou deuses
falsos, Agostinho faz o elogio à tradição de Israel, o qual reproduzo
inteiramente para não haver risco de palavras ou frases isoladas e
descontextualizadas:
“Julgo que nem os próprios judeus se atrevem a pretender que ninguém além dos israelitas pertenceu a Deus desde quando começou a descendência de Israel com a reprovação de seu irmão mais velho. É verdade que nenhum outro povo se encontrou que fosse digno de se chamar propriamente o povo de Deus; mas que tenha havido, mesmo entre outros povos, homens que tenham pertencido, não por comunhão terrestre mas celeste, aos verdadeiros israelitas, cidadãos da pátria do Alto, não podem eles negá-lo; porque, se o negassem facilmente seriam convencidos como o santo e admirável Job, que não foi indígena, nem prosélito, isto é, adventício do povo de Israel, mas procedia do povo idumeu, onde nascera e onde veio a morrer; e, todavia, é de tal maneira louvado pela palavra divina que nenhum homem dos seus tempos se lhe pode igualar no que respeita a justiça e piedade. Embora nas Crónicas não encontremos qual foi a sua época, podemos, porém, deduzir do seu livro, - que, devido ao seu mérito, os israelitas admitem no seu cânon – que ele pertencia à terceira geração posterior a Israel.
Não duvido de que a divina Providência quis, apenas por intermédio deste, que ficássemos a saber que puderam existir também entre os outros povos homens que viveram em conformidade com Deus, procuraram agradar-lhe e pertencerem à Jerusalém espiritual. Não se deve crer que isto tenha sido concedido senão àqueles a quem Deus revelou o único mediador entre Deus e os homens – o homem Jesus Cristo. Aos antigos santos foi anunciado que Ele havia de vir em carne, tal qual nós O anunciámos como já chegado, para que por Ele uma só e a mesma fé conduza a Deus todos os que estão predestinados a tornarem-se Cidade de Deus, Casa de Deus, Templo de Deus. É certo que as profecias de outros acerca da graça de Deus por Jesus Cristo podem ser encaradas como inventadas pelos cristãos. Por isso, se há quem discuta a este respeito, nada há mais de seguro para convencer os estranhos, quaisquer que eles sejam, e torna-los nossos (se procedem com rectidão) do que apresentarem-se-lhes as predições divinas acerca de Cristo que estão escritas nos códices dos judeus; uma vez arrancados estes às suas próprias moradas e dispersos eles por toda a Terra para prestarem este testemunho, é que a Igreja de Cristo se estendeu por toda parte.” (Cidade de Deus, livro 18, cap. 47).
Dado todo o contexto, agora posso extrair a inserção de Agostinho de
pretender colocar na memória do Mundo que no passado o judeu era o ‘povo
eleito’:
“É verdade que nenhum outro povo se encontrou que fosse digno de se chamar propriamente o povo de Deus [...]”
E também, essencial ao cristianismo é se basear no judaísmo, pois a
disputa entre judeus e cristãos é para ser o ‘povo eleito’ de Deus:
“É certo que as profecias de outros acerca da graça de Deus por Jesus Cristo podem ser encaradas como inventadas pelos cristãos. Por isso, se há quem discuta a este respeito, nada há mais de seguro para convencer os estranhos, quaisquer que eles sejam, e torna-los nossos (se procedem com rectidão) do que apresentarem-se-lhes as predições divinas acerca de Cristo que estão escritas nos códices dos judeus.”
Egípcios, minoicos, hititas, micênicos, babilônios, assírios, persas,
gregos, e romanos, as grandes civilizações que Agostinho certamente estudou ou
leu menção em maior ou menor medida, também chineses e hindus cujas rotas comerciais
que direta ou indiretamente o império macedônico conectou com Roma, em alguma
medida, mesmo que ínfima, lhe devem ter chegado algo, e todas estas
civilizações, nas palavras de Agostinho, pode-se inferir, estariam abaixo de
Israel, pois “nenhum outro povo se encontrou que fosse digno de se chamar
propriamente o povo de Deus”, enquanto incas, astecas e maias, também três
povos que se enquadram na categoria de altas culturas, que dificilmente ele
deve ter ouvido falar, mas existiam no período em que vivia, também eram, pela
lógica dele, abaixo de Israel. O conjunto somado de toda criação destes povos
das mais altas culturas da humanidade histórica, que captaram as leis
inteligíveis do universo e plasmaram na terra, captação que só a mente
superior, não reduzida aos imperativos biológicos do corpo, pode fazer,
resultando em alta cultura material e espiritual, com duração de séculos, e inclusive
milênios algumas delas como a egípcia e chinesa, não satisfizeram o Deus de
Agostinho nos períodos anteriores à Jesus, pois “nenhum outro povo se encontrou
que fosse digno de se chamar propriamente o povo de Deus”!
Ao menos na cristandade essa é a arqueologia cultural da humanidade! Ou
a maioria dos cristãos acha que não? Que algum outro povo antes de cristo tinha
mais valor que o povo de Israel?
É verdade que o proselitismo, a evangelização cristã, colocava para fins
de concorrência com seus contemporâneos a pessoa de Jesus, e se para as grandes
civilizações acima mencionadas, muitas já envelhecidas, corrompidas,
degeneradas, em dissolução, na fase final de seus ciclos, o mesmo recurso era
usado nas culturas mais novas que haviam no Ocidente, especialmente os
indo-europeus, quando para fazerem estes abdicarem de suas tradições ancestrais
os prosélitos recorriam à narrativa de que no período anterior à Jesus, “nenhum
outro povo se encontrou que fosse digno de se chamar propriamente o povo de
Deus,” uma vez que tal período de conversão dos povos mais jovens é um período,
séculos IV e V d.C., que vive o próprio autor desta frase, Santo Agostinho.
É a mesma lógica da simbologia da passagem da conversa entre Jesus e a
moça da Samaria em João 4,22, “A
salvação vem dos judeus.” Uma lógica aplicada de modo generalizante, e desta
vez para os indo-europeus, fossem celtas, ibéricos, germânicos, bálticos,
eslavos, bretões, nórdicos etc, e que a história verdadeira da antiguidade do
mundo era a que constava no Antigo Testamento.
Até aqui, vemos que apesar dos cristãos afirmarem que Jesus é um
rompimento com o judaísmo, não obstante, a evangelização inevitavelmente
procura sua base no judaísmo, recorrendo também frequentemente ao Antigo Testamento, tanto para
interpretação histórica dos povos da antiguidade, pois aceita como história da antiguidade
praticamente apenas o que está contido no Antigo
Testamento, bem como precisa recorrer ao Antigo Testamento a profecia que permite para o cristão transição
da condição de ‘povo eleito’ do judeu para os membros da ‘comunidade cristã’.
Continua em Cristianismo – uma ruptura total ou parcial com o judaísmo? - Parte 2 - Por Mykel Alexander
Notas
[1] The Cambridge Dictionary of
Judaism & Jewish Culture, vocábulo Abraham.
[2] As autoridades responsáveis pelos
estudos introdutórios na dos respectivos livros na 1ª edição (1956) da Bíblia de Jerusalém foram (pág. 7 da
edição utilizada, Bíblia de Jerusalém,
Editora Paulus, 1ª edição, 12 ª reimpressão, São Paulo, 2017):
Evangelho de Marcos: Joseph Huby.
Evangelho de Mateus: Maurice Benoît que também
assinava como Pierre-Benoît.
Evangelho de Lucas: Émile Osty.
Evangelho de João: Donatien Mollat.
Nas demais edições, 1973 e 1998, o alto colegiado
reunido pela École Biblique de Jérusalem avançou os estudos críticos, os quais
resultaram na presente edição brasileira baseada na edição original francesa de
1988. Tendo isto em conta quando alguma citação referente aos quatro autores
acima for feita será acompanhada de Et al.,
creditando assim os colaboradores do alto colegiado da École Biblique Jerusalém
que avançaram os estudos dos especialistas citados.
Para a introdução sobre os sinóticos usarei para referenciar
o autor simplesmente École Biblique uma vez que na edição em português da Bíblia de Jerusalém não é apontado o
autor, e também pelo fato dos textos das edições terem sido atualizados pelo
alto colegiado da École Biblique de Jérusalem.
[3]
Passagem em Between pagan and christians,
de Christopher P. Jones, pág. 37. Na
Bíblia de Jerusalém versão em
português, vertida a partir da escritura em hebraico, está assim “Os deuses dos
povos são todos vazios.”, contudo a nota a,
pág. 965, referente à este versículo reitera que no grego corresponde à demônio.”
[4] Gustave Bardy, La Conversion al Cristianismo durante los
primeiros siglos, Ediciones Encuentro, Madrid, 1990, p. 150.
[5] Passagem extraída por J. Dias Pereira, presente na própria nota referente a afirmação em questão, feita por Santo Agostinho, na edição utilizada da Cidade de Deus, volume II, pág. 859,
nota 1.
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(07/01/2017), Êxodo recorrente: Identidade judaica e Formação da História.
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Dombart e A. Kalb.
Santo
Agostinho, A Cidade de Deus, Volume
III (Livro XV a XXII), Editora Calouste Gulbenkian, 2ª Edição, Lisboa, 2000.
Tradução por J. Dias Pereira, a partir do original latino intitulado De Civitate Dei baseada na edição de B.
Dombart e A. Kalb.
Dicionário Houaiss, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2001, 1ª edição.
The Cambridge
Dictionary of Judaism & Jewish Culture,
Cambridge University Press, Nova Iorque, 2011, (editado por Judith R. Baskin,
Universidade de Oregon).
Sobre o autor: Mykel Alexander é licenciado em História (Unimes), Bacharel em Farmácia (Unisantos) e está no último semestre de licenciatura em Filosofia (Unimes).
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