sábado, 16 de março de 2019

Cristianismo – uma ruptura total ou parcial com o judaísmo? - Parte 2 - Por Mykel Alexander

Continuação da primeira parte: Cristianismo – uma ruptura total ou parcial com o judaísmo? - Parte 1 - Por Mykel Alexander

Mykel Alexander
O Evangelho de João: quem escreveu? Conserva tal livro teor judaico?

Como o ponto de partida da investigação se o cristianismo é ou não uma ruptura com o judaísmo veio de uma passagem do Evangelho de João, 4,22 “Porque a salvação vem dos judeus.”,  e após termos visto que o teor de valoração dos judeus como ‘povo eleito’ de Deus foi um recurso central na argumentação cristã contra o passado dos demais povos, é necessário agora examinar o contexto deste evangelho.

            A palavra evangelho quer dizer ‘Boa Nova’, de modo que a fim de facilitar a catequese, as principais mensagens atribuídas à Jesus foram reunidas por temas comuns, sendo que os narradores especializados na propagação da 'Boa Nova' vieram a ser conhecidos como ‘evangelistas’, os quais difundiam a mensagem cristã através da repetição oral dos pontos principais da doutrina atribuída à Jesus, e somente depois esta tradição oral foi vertida em escritos (École Biblique, p. 1689). Os três primeiros evangelhos, Marcos, Mateus e Lucas, por terem muitas semelhanças entre si, se diz que podem ser vistos sob o mesmo olhar, daí o termo sinótico (do grego sunóptikós – ‘que permite ver o conjunto em um só golpe de vista’[6]). O Evangelho de João é considerado o quarto evangelho e, se é semelhante aos três primeiros nas generalidades, por outro lado é diferente em muitas questões. Todavia, uma questão de elaboração bíblica já surgia nos primórdios da elaboração dos evangelhos:
“[...] os evangelhos escritos por Marcos, Mateus e Lucas não teriam recebido complementos, até modificações mais ou menos profundas, entre o momento em que foram compostos e o momento em que foram definitivamente recebidos nas Igrejas?[7]” (École Biblique, p. 1691).
            Os principais testemunhos dos Pais da Igreja sugerem que os quatro evangelhos estavam já constituídos como conhecemos na primeira metade do século II d.C. (École Biblique, pp 1691-1692), contudo os estudos modernos e contemporâneos encontram muitos problemas para emitir precisões de fontes e autorias dos evangelhos, principalmente pela relativa escassez de historicidade destas escrituras. Os eruditos da edição contemporânea da Bíblia de Jerusalém afirmam que os textos sinóticos possuem a “garantia de testemunhas oculares”, cuja preocupação não era rigor histórico, mas missionário, e os evangelistas “falavam para converter e edificar, inculcar e esclarecer a fé, defende-la contra os adversários”, “mas fizeram isso com o auxílio de testemunhos verídicos, garantidos pelo Espírito [...], exigidos tanto pela probidade de sua consciência quanto pela preocupação de não se tornar presa de refutações hostis.” (École Biblique, p. 1693). Existe, portanto, muita dificuldade para se precisar os autores das escrituras bíblicas, ao mesmo tempo uma pretensão, por parte das autoridades cristãs, de que os escritos eram influenciados pela força divina representada na concepção cristã como Espírito Santo.

            O cristão alega que ao seguir Jesus, ele segue uma linha de ensinamentos que rompe com o judaísmo. Todavia, há passagens tanto dos evangelhos como dos pais da Igreja que exaltam a tradição judaica como certa e a dos demais povos como erradas, impregnadas por forças do mal, conforme exposta acima. Mas mesmo concedendo que tais escrituras cristãs tivessem o auxílio de uma força divina, contudo, levanta-se a questão, estariam imunes às falsificações de impostores infiltrados na Igreja, desde sua etapa inicial de formação? E entre impostores ou falsificadores estariam judeus ou simpatizantes do judaísmo que tentariam inserir passagens que diminuíssem a ruptura que possa realmente ter ocorrido entre cristãos e judeus nos primórdios do cristianismo, especialmente nos primeiros cem anos?

O cristianismo como instituição que se consolidou no Ocidente e em algumas outras regiões, não procede de uma concepção extremo-oriental, nem indo-europeia, nem mesoamericana e nem africana. No que toca a visão geral é ainda mantida a concepção de que todos os povos só têm salvação vinda do tronco original judaico iniciadas com as alegadas alianças de Deus com Abraão e depois com Moisés, sendo que a diferença é que para o judeu a autoridade vem diretamente e unicamente das escrituras judaicas rabínicas, enquanto para os cristãos a salvação vem das escrituras testamentárias, que narram a suposta nova aliança de Deus com a humanidade através de Jesus, que seria o início de uma nova etapa. Contudo, os fatos no que tocam o período anterior à Jesus conservam no cristianismo toda a narrativa judaica intacta, conforme já foi exposto, especialmente em Santo Agostinho, se não o maior nome cristão da antiguidade, certamente ocupa a posição de proeminência junto à outros defensores do cristianismo como Justino de Roma (100-165 d.C.), Irineu de Lion (130-202 d.C) e Tertuliano de Cartago (160-220 d.C.).

Chega-se aqui a outro pondo fundamental. De qual parte da narrativa judaica do Antigo Testamento procede a origem do cristianismo? O Novo Testamento recorre como fundamento para sua alegada profecia da vinda de um “salvador” no mais judaico, no sentido de ‘povo eleito’, dos livros do Antigo Testamento que é o Deuteronômio.

Em Deuteronômio 18,15 e 18,18 é registrada a promessa da vinda de um profeta:
Iahweh teu Deus suscitará um profeta como eu no meio de ti, dentre os teus irmãos, e vós o ouvireis.” (Deuteronômio, 18,15).
Vou suscitar para eles um profeta como tu, no meio dos sus irmãos. Colocarei as minhas palavras em sua boca e ele lhes comunicará tudo o que eu lhe ordenar.” (Deuteronômio, 18,18)|.
            Segundo Mollat et al (p.1835) o autor do Evangelho de João conecta a vinda de Jesus diretamente ao Deuteronômio, incluindo especialmente às duas passagens acima expostas:
“Essa promessa se realizou em Jesus de Nazaré. Tal convicção subtende todo o evangelho de João e comanda todo os seus temas maiores. Jesus é, não um profeta ordinário, mas o profeta por excelência [João 6,14; João 7,40-52], que alimenta o povo de Deus como fizera Moisés durante o êxodo [João 6,5-13]. Não é João Batista que é o profeta por excelência [João 1,21], mas Jesus, a respeito do qual Moisés tinha escrito na Lei [João 1,45; João 5,46; que remontam à Deuteronômio 18, 15 e 18,18]. Para salientar isso o evangelista põe nos lábios de Jesus palavras que se referiam a Moisés no AT [João 12,48-50; João 8,28-29; João 7,16-17; remontando ao Antigo Testamento em Deuteronômio 18,18-19; Números 16,28; Exodo 3,12, Exodo 4,12.]”
E em que passagem do Evangelho de João se recorre às profecias do Antigo Testamento? Nas passagens abaixo onde o autor deste evangelho coloca as seguintes palavras diretamente na boca de Jesus e na das testemunhas da narrativa:
Se crêsseis em Moisés, havereis de crer também em mim, porque foi ao meu respeito que ele escreveu. Mas se não credes em seus escritos como crereis em minhas palavras?” (João 5, 46-47). [Destaque em negrito da minha autoria].

Filipe encontra Natanel e lhe diz: ‘Encontramos aquele de quem escreveram Moisés, na Lei, e os profetas: Jesus, o filho de José, de Nazaré.’” (João 1,45).

Vendo o sinal que ele [Jesus] fizera, aqueles homens exclamavam: ‘Esse é, verdadeiramente, o profeta que deve vir ao mundo’” (João 6,14).
Alguns entre a multidão, ouvindo essas palavras, diziam: ‘Esse é, verdadeiramente, o profeta!’”(João 7,40)
Também, Mollat et al. (p. 1835) observa que Jesus é comparado no Evangelho de João a um novo Moisés[8], e que:
“[...] toda a sua vida [a de Jesus] é definitivamente o cumprimento das grandes figuras messiânicas do Antigo Testamento.” (Mollat et al., p. 1840).
Não é de pouca importância a realidade de que os apóstolos eram de origem judaica, e tais vínculos não foram dissolvidos completamente, como iremos ver, claro, nos detendo no Evangelho de João, o qual é o que contém a passagem “a salvação vem dos judeus”, e investigando suas características, as quais evidenciam fortíssimas influências judaicas em todos os sentidos.

           Mas quem escreveu o Evangelho de João? Como mencionado anteriormente o Evangelho de João é admitido como o último a ser escrito, posterior aos de São Mateus, São Marcos e São Lucas, e um fato que o cristão em geral não sabe, é que o autor do Evangelho de João é anônimo.

Robert Henry Lightfoot, acadêmico e teólogo de Oxford durante a primeira metade do século XX, explica que desde o século II d.C. a autoria do Evangelho de João tem sido atribuído a uma testemunha ocular dos ensinamentos de Jesus, um dos originais doze apóstolos, João o filho mais jovem de Zebedeu, mas que, contudo, no próprio Evangelho de João não se identifica que o autor seja este João filho de Zebedeu. Outro ponto importante é que o João, o leigo filho de Zebedeu, descrito em Atos 4,23 não corresponde ao tipo de conhecimento que é exposto neste evangelho. Lightfoot afirma que segundo algumas tradições iniciais, o autor de João seria um indivíduo que teria concluído um trabalho que representava o esforço doutrinário e literário não de uma pessoa, mas de um grupo todo. O conteúdo de João, diz Lightfoot, conjuga vários componentes além do rabínico, tais como gnosticismo, conceitos judaico-helênicos, além de conter fatos históricos que foram se acumulando nos evangelhos sinóticos, isto é, Marcos, Mateus e Lucas, que precederam João (Lightfoot, pp 1-6). Lightfoot conclui da seguinte maneira a questão da autoria do Evangelho de João:
“Pois enquanto nós temos algum conhecimento confiável sobre João, o filho de Zebedeu, nós não temos nada sobre João o Presbítero [um personagem obscuro do início do cristianismo também considerado como possível autor] ou qualquer outra figura a quem a autoria tenha sido assinalada.” (Lightfoot, p.7).
Eis então uma surpresa para a grande maioria dos cristãos, o João Evangelista que comumente é admitido ser o João filho de Zebedeu, na realidade carece de qualquer evidência sobre sua identidade, de fato.

Descartada opção de João filho de Zebedeu, o leigo pode pensar que o a autoria do Evangelho de João seja então João Batista, que precedeu Jesus. No entanto tal opção é imediatamente descartada uma vez que há a decisiva constatação de que o Evangelho de João possui fatos posteriores a morte do próprio João Batista

O fato é, explica Juan Mateos (pp 239-240), falecido membro do Instituto Bíblico de Roma e especialista em textos joaninos, que prevalece a posição que não se conhece a identidade propriamente do autor desse evangelho. Explica Antonio Piñero (pp 395-396), da Universidad Complutense de Madrid, que o próprio Evangelho de João apresenta seu autor em seu epílogo, capítulo 21, como o ‘discípulo amado’ (João 21, 20-24), o qual em passagens anteriores já era mencionado (João 13, 23-26; João 19, 25-27; João 20, 2-10).

Há ainda uma outra denominação para o autor deste evangelho, a saber, a de o “outro discípulo” (João 18, 15-16).

Para além de tudo isso, analisa Piñero, não faria sentido manter anonimato para referir-se à João na indicação da autoria do Evangelho de João no epílogo deste próprio evangelho (Piñero p. 396). De fato, o autor é tido como anônimo e a elaboração de seu evangelho possui acumulado conhecimento dos demais evangelhos e polêmicas anteriores, desenvolvidas no decorrer do século I d.C.

Como este evangelho é estimado ter sido concluído em 100 d.C. e o próprio ‘discípulo amado’, sendo um contemporâneo de Jesus, estaria com aproximadamente cem anos de idade na época da redação final do texto, por isso especula-se até, com lógica, que o autor do Evangelho de João, que é anônimo, seja não o próprio ‘discípulo amado’ mas sim algum membro da linhagem mais jovem de seguidores deste ‘discípulo amado’ (Piñero, p. 397),

         Todavia, se por um lado o nome do autor do Evangelho de João ainda não é conhecido, por outro lado muitas características desse autor podem ser observadas.

            Em relação ao contexto da época, o autor deste evangelho deparava-se com duas tendências principais de judaísmo, o rabínico e o helenístico, respectivamente vinculados com o Antigo Testamento e a filosofia grega. Todo o transfundo deste evangelho, afirma Juan Mateos, mesmo sem fazer uso de citações, faz uso de símbolos do Antigo Testamento, como cordeiro (João 1,29; João 1,36) e pastor (João 10, 1 - 16). Elementos nitidamente rabínicos, afirma Mateos, também estão presentes, inclusive uma questão fundamental para o conceito tão caro ao abraâmismo, a alegada unidade existente entre Deus e Israel (Mateos, pp 222-223).

            Mollat et al. também corrobora o relevante influxo judaico no Evangelho de João:
“Todo o evangelho é cheio de minúcias concretas que provam que seu autor estava a par dos costumes religiosos judaicos, assim como da mentalidade rabínica ou da casuística em uso pelos doutores da Lei [Antigo Testamento].” (Mollat et al., p. 1840).
            Há inclusive o uso da numerologia na composição de tal evangelho (Mollat et al., p. 1837). Claro que o simbolismo do número era algo tradicional e não exclusivamente judaico, inclusive no século VI a.C. os pitagóricos fizeram desenvolvimentos que se desdobraram em proporções mais que surpreendentes em todo saber ocidental, levadas a frente, por exemplo, por Platão, mas no caso deste evangelho a numerologia é bem mais provável ser oriunda dos estudos judaicos da cabala.

            Por outro lado, há no Evangelho de João componentes que podem ser admitidos como platônicos, tais como o contraste entre acima e o abaixo (João 8,23; João 18,36) ou o conceito de verdadeiro (João 1,9; João 6,32; João 15,1) que opõe duas classes de realidades. Observa Mateos que o uso da palavra logos, de função central na concepção de mundo dos filósofos estoicos, é relevante neste evangelho, porém não sendo suficiente para por este evangelho e o estoicismo em coincidência da concepção do que é o ser humano. Todavia, o conteúdo da obra é claramente judaico, e o valor grego é mais o do uso linguístico corrente na época necessário para melhor difusão das ideias cristãs do que da visão de mundo grega propriamente. (Mateos, p. 224).

            Quanto a datação da composição deste evangelho, existem duas posições, uma para os últimos anos do século I d.C., adotada pela maioria, outra para cerca de 66-70 d.C., adotada pela minoria. O Evangelho de João possui algumas peculiaridades, tais como pertencer a uma tradição mais antiga e independente dos outros três evangelhos, os sinóticos; possuir contatos com uma tradição aramaica original; somente João utiliza o termo Messias (João 1,41; João 4,25) que é recorrente no Antigo Testamento; e, bem importante, apresenta contato com a mais rigorosa tradição judaica, em especial o Tratado do Sinédrio, que faz parte do Talmud (Mateos, p. 227), este sendo o conjunto de escritos que recolheu as condutas centrais do judaísmo no decorrer do tempo. 

             Vamos nos deter agora por um momento e fazer uma pergunta na qual é necessária uma reflexão.

Quantos cristãos sequer têm isso em consideração? Pode à primeira vista parecer um detalhe de mera minúcia técnica ou de erudição, mas o que foi exposto até agora é contundente para mostrar o quão sujeito ao capricho de autores, que hoje são anônimos, estiveram as escrituras bíblicas já nos dois primeiros séculos do cristianismo.

Não é incomum que o leigo da história e da Bíblia, já fanatizado, saia por aí dizendo que a Bíblia foi escrita por Deus, fantasiando em sua cabeça uma situação na qual Deus dite a um escriba um texto que siga já completado e acabado para os copistas fazerem as bíblias, as quais seriam distribuídas ou vendidas durante a antiguidade, e de tal maneira que o fanático ou o leigo pressupõem que as escrituras não são alvos de alterações feita por pessoas com interesses e intenções diversas. Mas a realidade mostra que desde o início as escrituras bíblicas, tanto do Antigo Testamento[9] como do Novo Testamento eram alvos de alterações, interpolações e falsificações.

            É constatável, necessita-se insistir, que as pessoas não costumam imaginar que a Bíblia e mesmo os evangelhos são composições que reúnem textos escritos em períodos diversos, por pessoas diversas, por grupos diversos, e com interesses diversos devido à motivos diversos, devido a várias correntes doutrinárias e ideologias diversas, tendo passado tanto por sinédrios judaicos desde antes de Jesus como por concílios da Igreja depois de Jesus. Acrescente-se ainda que os escritos bíblicos antes de serem textos escritos, foram transmitidos oralmente. Estes processos num todo oferecem pontos frágeis para deformar em muito a mensagem original do autor de um dado texto bíblico.

Na própria redação final do Evangelho de João foi identificado, no capítulo 21, que o texto sofreu alterações:
“A propósito do capítulo 21 se tem indicado a possível presença de outra mão na redação definitiva do Evangelho, a que tem chegado até nós. Esta ‘segunda mão’ parece admitida por todos no que respeita ao adicionado no ‘apêndice’ ou capítulo 21. Mas, ademais, a crítica costuma atribuir à mão que suplementou este último capítulo certos retoques e correções no corpo do Evangelho [...]” (Piñero, p. 397).
            Mollat et al. também admite que partes do Evangelho de João são inconciliáveis para serem escritos por uma única pessoa (Mollat et al, p. 1837).

E uma observação do mesmo Mollat et al. nos traz ao início deste estudo, o qual questiona o sentido da passagem do Evangelho de João, 4,22, “Porque a salvação vem dos judeus.”, passagem a qual, penso eu, admitindo que Jesus teria sido uma ruptura com o judaísmo, não faz sentido dentro do que se entende por ruptura, e dentro de um contexto mais amplo que irei tratar mais adiante, da disputa entre judeus e romanos, concluo que é muito possível ter ocorrido no Evangelho de João a inserção da passagem “Porque a salvação vem dos judeus” para poder colocar os cristãos e a vasta diversidade de pagãos vivendo no Império Romano ao lado dos judeus e não dos romanos.

Vamos ver a observação de Mollat et al., este estudioso das escrituras joaninas, sobre a personalidade do último redator do Evangelho de João:
“[...] era judeu cristão que se esforçou para rejudaizar o evangelho por meio de retoques de amplitude menor.” (Mollat et al., p. 1838).
Interessante o termo utilizado por Mollat et al., ‘rejudaizar’, ou seja, poderia então ter havido uma ruptura entre cristãos e judeus em algum nível, possivelmente relevante, a qual depois, ao meu entender, conforme o cristianismo ganhava força, estaria sendo atenuada pelos judeus ou simpáticos do judaísmo ao inserirem passagens, através de interpolações, que fossem direcionadas aos pagãos e cristãos a não deixarem de considerar os judeus como o verdadeiro ‘povo eleito’, uma vez que para as pretensões judaicas, como iremos ver, de tomarem de Roma a posição de maior força do mundo, seria preciso ter todo tipo de apoio.

Dando consistente respaldo à esta leitura histórica estão mais duas considerações.

A primeira é pelo fato de que o cristianismo surgiu com um dentre vários outros movimentos messiânicos judaicos, cujos adeptos estavam impregnados da expectativa judaica de domínio universal por serem os judeus o alegado ‘povo eleito de Deus’, e ruptura entre judeus e cristãos possivelmente iniciada por Jesus não ocorreu de uma só vez, mas sim gradualmente, com as hostilidades judaicas aos cristãos tonando-se explosivas em cerca de 50 d.C., e havendo a exclusão dos cristãos da sinagoga ao redor de 85-90 d.C. (Mateos, p. 231).

A segunda é que no próprio processo de desenvolvimento do cristianismo a narrativa exclusivamente judaica do universo, da divindade, do mundo e dos povos, foi inevitável, pois ao mesmo tempo que as doutrinas cristãs se difundiam pela oralidade nos dois primeiros séculos da era cristã, os cristãos, por outro lado, enquanto ainda não possuíam em forma escrita o Novo Testamento, optaram como material escrito para seus estudos de formação unicamente o Antigo Testamento (Barrera, p. 276), dispensando todos escritos de outras tradições do mundo. É comum um católico não desatento advertir que os atuais evangélicos dão demasiada importância ao Antigo Testamento em detrimento do Novo Testamento, mas, todavia, esquecem que os núcleos cristãos iniciais no que concerne a referências escritas, experimentaram aproximadamente dois séculos de doutrinação exclusiva no Antigo Testamento.

Portanto, chegamos a uma leitura histórica que evidencia durante a formação do cristianismo duas correntes se antagonizando, uma, a da ruptura do cristianismo com o judaísmo, outra, a da constante reconciliação do judaísmo com o cristianismo, que é melhor expressada pela afirmação de Mollat et al. usada para se referir aos ajustes e alterações no Evangelho de João, conforme exposto acima: ‘rejudaizar’ o evangelho.

Como iremos ver mais à frente, várias outras etapas importantes da formação do cristianismo tiveram como tema central de disputas o que podemos chamar como ‘rejudaização’, ‘continuidade entre judaísmo e cristianismo’, ‘unidade entre Antigo Testamento e Novo Testamento’, ‘manutenção do cristianismo como religião vinculada ao acordo de Abraão com Deus’.  




Notas


[6] Dicionário Houaiss, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2001, 1ª edição. Ver vocábulo sinóptico.

[7] Há mais de 2000 manuscritos gregos dos sinóticos em grego escritos em pergaminho, procedentes do 4º ao 14º século. Os testos utilizados para o estudo dos sinóticos ou para a tradução para as línguas modernas são os dois mais antigos do mencionado apanhado, o que é provavelmente do mosteiro de Santa Catarina do Sinai (atualmente no Museu Britânico) e o Vaticano (atualmente na Biblioteca Vaticana). Ambos são datados de meados do século IV (École Biblique, p. 1691).

[8] Isto é uma insistência de vincular o cristianismo com o judaísmo no Evangelho de João em que é atribuído à Jesus as seguintes passagens proferidas para os judeus:

Moisés vos deu a Lei? No entanto nenhum de vós pratica a Lei. Por que procurais matar-me?” (João 7,19).

Se um homem é circundado em dia de sábado para que não se transgrida a Lei de Moisés, por que vos irais contra mim, por ter curado um homem todo no sábado?” (João 7,23)

[9] Ver estudo sobre falsificações do Antigo Testamento em Rusell Gmirkin, Berossus and Genesis, Manetho and Exodus: Hellenistic Histories and the Date of the Pentateuch, editor T&T Clark, 2006.

Ver também Êxodo recorrente: Identidade judaica e Formação da História - Por Andrew Joyce



          
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Santo Agostinho, A Cidade de Deus, Volume III (Livro XV a XXII), Editora Calouste Gulbenkian, 2ª Edição, Lisboa, 2000. Tradução por J. Dias Pereira, a partir do original latino intitulado De Civitate Dei baseada na edição de B. Dombart e A. Kalb.

Dicionário Houaiss, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2001, 1ª edição.

The Cambridge Dictionary of Judaism & Jewish Culture, Cambridge University Press, Nova Iorque, 2011, (editado por Judith R. Baskin, Universidade de Oregon).   




Sobre o autor: Mykel Alexander é licenciado em História (Unimes), Bacharel em Farmácia (Unisantos) e está no último semestre de licenciatura em Filosofia (Unimes).
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