Mykel Alexander |
O Evangelho de João: quem escreveu?
Conserva tal livro teor judaico?
Como o ponto de partida da investigação se o cristianismo é ou não uma
ruptura com o judaísmo veio de uma passagem do Evangelho de João, 4,22 “Porque a salvação vem dos judeus.”, e
após termos visto que o teor de valoração dos judeus como ‘povo eleito’ de Deus
foi um recurso central na argumentação cristã contra o passado dos demais povos,
é necessário agora examinar o contexto deste evangelho.
A palavra evangelho quer dizer ‘Boa Nova’, de modo que a fim de facilitar a catequese, as principais mensagens atribuídas à Jesus foram reunidas por temas comuns, sendo que os narradores especializados na propagação da 'Boa Nova' vieram a ser conhecidos como ‘evangelistas’, os quais difundiam a mensagem cristã através da repetição oral dos pontos principais da doutrina atribuída à Jesus, e somente depois esta tradição oral foi vertida em escritos (École Biblique, p. 1689). Os três primeiros evangelhos, Marcos, Mateus e Lucas, por terem
muitas semelhanças entre si, se diz que podem ser vistos sob o mesmo olhar, daí o termo sinótico (do grego sunóptikós – ‘que permite ver o conjunto em um só golpe de vista’[6]). O Evangelho de João é considerado o quarto evangelho e, se é semelhante aos três primeiros nas generalidades, por outro lado é diferente em muitas questões. Todavia, uma questão de elaboração bíblica já surgia nos primórdios da
elaboração dos evangelhos:
“[...] os evangelhos escritos por Marcos, Mateus e Lucas não teriam recebido complementos, até modificações mais ou menos profundas, entre o momento em que foram compostos e o momento em que foram definitivamente recebidos nas Igrejas?[7]” (École Biblique, p. 1691).
Os principais testemunhos dos Pais
da Igreja sugerem que os quatro evangelhos
estavam já constituídos como conhecemos na primeira metade do século II d.C. (École
Biblique, pp 1691-1692), contudo os estudos modernos e contemporâneos encontram
muitos problemas para emitir precisões de fontes e autorias dos evangelhos, principalmente pela relativa
escassez de historicidade destas escrituras. Os eruditos da edição
contemporânea da Bíblia de Jerusalém
afirmam que os textos sinóticos possuem a “garantia de testemunhas oculares”,
cuja preocupação não era rigor histórico, mas missionário, e os evangelistas
“falavam para converter e edificar, inculcar e esclarecer a fé, defende-la
contra os adversários”, “mas fizeram isso com o auxílio de testemunhos
verídicos, garantidos pelo Espírito [...], exigidos tanto pela probidade de sua
consciência quanto pela preocupação de não se tornar presa de refutações
hostis.” (École Biblique, p. 1693). Existe, portanto, muita dificuldade para se
precisar os autores das escrituras bíblicas, ao mesmo tempo uma pretensão, por
parte das autoridades cristãs, de que os escritos eram influenciados pela força
divina representada na concepção cristã como Espírito Santo.
O cristão alega que ao seguir Jesus,
ele segue uma linha de ensinamentos que rompe com o judaísmo. Todavia, há
passagens tanto dos evangelhos como
dos pais da Igreja que exaltam a tradição judaica como certa e a dos demais
povos como erradas, impregnadas por forças do mal, conforme exposta acima. Mas
mesmo concedendo que tais escrituras cristãs tivessem o auxílio de uma força
divina, contudo, levanta-se a questão, estariam imunes às falsificações de
impostores infiltrados na Igreja, desde sua etapa inicial de formação? E entre
impostores ou falsificadores estariam judeus ou simpatizantes do judaísmo que
tentariam inserir passagens que diminuíssem a ruptura que possa realmente ter
ocorrido entre cristãos e judeus nos primórdios do cristianismo, especialmente
nos primeiros cem anos?
O cristianismo como instituição que se consolidou no Ocidente e em
algumas outras regiões, não procede de uma concepção extremo-oriental, nem
indo-europeia, nem mesoamericana e nem africana. No que toca a visão geral é
ainda mantida a concepção de que todos os povos só têm salvação vinda do tronco
original judaico iniciadas com as alegadas alianças de Deus com Abraão e depois
com Moisés, sendo que a diferença é que para o judeu a autoridade vem diretamente
e unicamente das escrituras judaicas rabínicas, enquanto para os cristãos a
salvação vem das escrituras testamentárias, que narram a suposta nova aliança
de Deus com a humanidade através de Jesus, que seria o início de uma nova etapa.
Contudo, os fatos no que tocam o período anterior à Jesus conservam no
cristianismo toda a narrativa judaica intacta, conforme já foi exposto,
especialmente em Santo Agostinho, se não o maior nome cristão da antiguidade,
certamente ocupa a posição de proeminência junto à outros defensores do
cristianismo como Justino de Roma (100-165 d.C.), Irineu de Lion (130-202 d.C)
e Tertuliano de Cartago (160-220 d.C.).
Chega-se aqui a outro pondo fundamental. De qual parte da narrativa
judaica do Antigo Testamento procede
a origem do cristianismo? O Novo
Testamento recorre como fundamento para sua alegada profecia da vinda de um
“salvador” no mais judaico, no sentido de ‘povo eleito’, dos livros do Antigo Testamento que é o Deuteronômio.
Em Deuteronômio 18,15 e 18,18
é registrada a promessa da vinda de um profeta:
“Iahweh teu Deus suscitará um profeta como eu no meio de ti, dentre os teus irmãos, e vós o ouvireis.” (Deuteronômio, 18,15).
“Vou suscitar para eles um profeta como tu, no meio dos sus irmãos. Colocarei as minhas palavras em sua boca e ele lhes comunicará tudo o que eu lhe ordenar.” (Deuteronômio, 18,18)|.
Segundo Mollat et al (p.1835) o autor do Evangelho
de João conecta a vinda de Jesus
diretamente ao Deuteronômio,
incluindo especialmente às duas passagens acima expostas:
“Essa promessa se realizou em Jesus de Nazaré. Tal convicção subtende todo o evangelho de João e comanda todo os seus temas maiores. Jesus é, não um profeta ordinário, mas o profeta por excelência [João 6,14; João 7,40-52], que alimenta o povo de Deus como fizera Moisés durante o êxodo [João 6,5-13]. Não é João Batista que é o profeta por excelência [João 1,21], mas Jesus, a respeito do qual Moisés tinha escrito na Lei [João 1,45; João 5,46; que remontam à Deuteronômio 18, 15 e 18,18]. Para salientar isso o evangelista põe nos lábios de Jesus palavras que se referiam a Moisés no AT [João 12,48-50; João 8,28-29; João 7,16-17; remontando ao Antigo Testamento em Deuteronômio 18,18-19; Números 16,28; Exodo 3,12, Exodo 4,12.]”
E em que passagem do Evangelho de
João se recorre às profecias do Antigo
Testamento? Nas passagens abaixo onde o autor deste evangelho coloca as
seguintes palavras diretamente na boca de Jesus e na das testemunhas da
narrativa:
“Se crêsseis em Moisés, havereis de crer também em mim, porque foi ao meu respeito que ele escreveu. Mas se não credes em seus escritos como crereis em minhas palavras?” (João 5, 46-47). [Destaque em negrito da minha autoria].
“Filipe encontra Natanel e lhe diz: ‘Encontramos aquele de quem escreveram Moisés, na Lei, e os profetas: Jesus, o filho de José, de Nazaré.’” (João 1,45).
“Vendo o sinal que ele [Jesus] fizera, aqueles homens exclamavam: ‘Esse é, verdadeiramente, o profeta que deve vir ao mundo’” (João 6,14).
“Alguns entre a multidão, ouvindo essas palavras, diziam: ‘Esse é, verdadeiramente, o profeta!’”(João 7,40)
Também, Mollat et al. (p.
1835) observa que Jesus é comparado no Evangelho
de João a um novo Moisés[8], e que:
“[...] toda a sua vida [a de Jesus] é definitivamente o cumprimento das grandes figuras messiânicas do Antigo Testamento.” (Mollat et al., p. 1840).
Não é de pouca importância a realidade de que os apóstolos eram de
origem judaica, e tais vínculos não foram dissolvidos completamente, como
iremos ver, claro, nos detendo no Evangelho
de João, o qual é o que contém a passagem “a salvação vem dos judeus”, e
investigando suas características, as quais evidenciam fortíssimas influências
judaicas em todos os sentidos.
Mas
quem escreveu o Evangelho de João? Como
mencionado anteriormente o Evangelho de João é admitido como o
último a ser escrito, posterior aos de São
Mateus, São Marcos e São Lucas, e um fato que o cristão em
geral não sabe, é que o autor do Evangelho
de João é anônimo.
Robert Henry Lightfoot, acadêmico e teólogo de Oxford durante a primeira
metade do século XX, explica que desde o século II d.C. a autoria do Evangelho de João tem sido atribuído a
uma testemunha ocular dos ensinamentos de Jesus, um dos originais doze
apóstolos, João o filho mais jovem de Zebedeu, mas que, contudo, no próprio Evangelho de João não se identifica que
o autor seja este João filho de Zebedeu. Outro ponto importante é que o João, o
leigo filho de Zebedeu, descrito em Atos
4,23 não corresponde ao tipo de conhecimento que é exposto neste evangelho. Lightfoot
afirma que segundo algumas tradições iniciais, o autor de João seria um indivíduo que teria concluído um trabalho que
representava o esforço doutrinário e literário não de uma pessoa, mas de um
grupo todo. O conteúdo de João, diz Lightfoot,
conjuga vários componentes além do rabínico, tais como gnosticismo, conceitos
judaico-helênicos, além de conter fatos históricos que foram se acumulando nos
evangelhos sinóticos, isto é, Marcos,
Mateus e Lucas, que precederam João
(Lightfoot, pp 1-6). Lightfoot conclui da seguinte maneira a questão da autoria
do Evangelho de João:
“Pois enquanto nós temos algum conhecimento confiável sobre João, o filho de Zebedeu, nós não temos nada sobre João o Presbítero [um personagem obscuro do início do cristianismo também considerado como possível autor] ou qualquer outra figura a quem a autoria tenha sido assinalada.” (Lightfoot, p.7).
Eis então uma surpresa para a grande maioria dos cristãos, o João
Evangelista que comumente é admitido ser o João filho de Zebedeu, na realidade
carece de qualquer evidência sobre sua identidade, de fato.
Descartada opção de João filho de Zebedeu, o leigo pode pensar que o a
autoria do Evangelho de João seja então João Batista, que
precedeu Jesus. No entanto tal opção é imediatamente descartada uma vez que há
a decisiva constatação de que o Evangelho
de João possui fatos posteriores a morte do próprio João Batista
O fato é, explica Juan Mateos (pp 239-240), falecido membro do Instituto
Bíblico de Roma e especialista em textos joaninos, que prevalece a posição que
não se conhece a identidade propriamente do autor desse evangelho. Explica
Antonio Piñero (pp 395-396), da Universidad Complutense de Madrid, que o
próprio Evangelho de João apresenta
seu autor em seu epílogo, capítulo 21, como o ‘discípulo amado’ (João 21, 20-24), o qual em passagens
anteriores já era mencionado (João 13,
23-26; João 19, 25-27; João 20, 2-10).
Há ainda uma outra denominação para o autor deste evangelho, a saber, a
de o “outro discípulo” (João 18,
15-16).
Para além de tudo isso, analisa Piñero, não faria sentido manter
anonimato para referir-se à João na indicação da autoria do Evangelho de João no epílogo deste próprio evangelho (Piñero p. 396). De
fato, o autor é tido como anônimo e a elaboração de seu evangelho possui
acumulado conhecimento dos demais evangelhos e polêmicas anteriores,
desenvolvidas no decorrer do século I d.C.
Como este evangelho é estimado ter sido concluído em 100 d.C. e o
próprio ‘discípulo amado’, sendo um contemporâneo de Jesus, estaria com
aproximadamente cem anos de idade na época da redação final do texto, por isso
especula-se até, com lógica, que o autor do Evangelho de
João, que é anônimo, seja não o próprio ‘discípulo amado’ mas sim algum
membro da linhagem mais jovem de seguidores deste ‘discípulo amado’ (Piñero, p.
397),
Todavia, se por um lado o nome do autor
do Evangelho de João ainda não é
conhecido, por outro lado muitas características desse autor podem ser
observadas.
Em relação ao contexto da época, o autor deste evangelho deparava-se com duas
tendências principais de judaísmo, o rabínico e o helenístico, respectivamente
vinculados com o Antigo Testamento e a filosofia grega. Todo o
transfundo deste evangelho, afirma Juan Mateos, mesmo sem fazer uso de
citações, faz uso de símbolos do Antigo Testamento,
como cordeiro (João 1,29;
João 1,36) e pastor (João 10, 1 - 16). Elementos nitidamente
rabínicos, afirma Mateos, também estão presentes, inclusive uma questão
fundamental para o conceito tão caro ao abraâmismo, a alegada unidade existente
entre Deus e Israel (Mateos, pp 222-223).
Mollat et al. também corrobora o relevante influxo judaico no Evangelho de João:
“Todo o evangelho é cheio de minúcias concretas que provam que seu autor estava a par dos costumes religiosos judaicos, assim como da mentalidade rabínica ou da casuística em uso pelos doutores da Lei [Antigo Testamento].” (Mollat et al., p. 1840).
Há inclusive o uso da numerologia na
composição de tal evangelho (Mollat et
al., p. 1837). Claro que o simbolismo do número era algo tradicional e não
exclusivamente judaico, inclusive no século VI a.C. os pitagóricos fizeram
desenvolvimentos que se desdobraram em proporções mais que surpreendentes em
todo saber ocidental, levadas a frente, por exemplo, por Platão, mas no caso
deste evangelho a numerologia é bem mais provável ser oriunda dos estudos
judaicos da cabala.
Por outro lado, há no Evangelho de João
componentes que podem ser admitidos como platônicos, tais como o contraste
entre acima e o abaixo (João 8,23; João 18,36) ou
o conceito de verdadeiro (João 1,9; João 6,32; João 15,1) que opõe duas classes de realidades. Observa Mateos que
o uso da palavra logos, de função central na concepção de mundo dos
filósofos estoicos, é relevante neste evangelho, porém não sendo suficiente
para por este evangelho e o estoicismo em coincidência da concepção do que é o
ser humano. Todavia, o conteúdo da obra é claramente judaico, e o valor grego é
mais o do uso linguístico corrente na época necessário para melhor difusão das
ideias cristãs do que da visão de mundo grega propriamente. (Mateos, p. 224).
Quanto a datação da composição deste evangelho, existem duas posições, uma para
os últimos anos do século I d.C., adotada pela maioria, outra para cerca de
66-70 d.C., adotada pela minoria. O Evangelho
de João possui algumas peculiaridades, tais como pertencer a uma tradição
mais antiga e independente dos outros três evangelhos, os sinóticos; possuir
contatos com uma tradição aramaica original; somente João utiliza o termo Messias (João 1,41; João 4,25) que é recorrente no Antigo Testamento; e, bem importante, apresenta
contato com a mais rigorosa tradição judaica, em especial o Tratado do
Sinédrio, que faz parte do Talmud (Mateos,
p. 227), este sendo o conjunto de escritos que recolheu as condutas centrais do
judaísmo no decorrer do tempo.
Vamos nos deter agora por um momento e fazer
uma pergunta na qual é necessária uma reflexão.
Quantos cristãos sequer têm isso em consideração? Pode à primeira vista
parecer um detalhe de mera minúcia técnica ou de erudição, mas o que foi
exposto até agora é contundente para mostrar o quão sujeito ao capricho de autores,
que hoje são anônimos, estiveram as escrituras bíblicas já nos dois primeiros
séculos do cristianismo.
Não é incomum que o leigo da história e da Bíblia, já fanatizado, saia por aí dizendo que a Bíblia foi escrita por Deus, fantasiando
em sua cabeça uma situação na qual Deus dite a um escriba um texto que siga já
completado e acabado para os copistas fazerem as bíblias, as quais seriam
distribuídas ou vendidas durante a antiguidade, e de tal maneira que o fanático
ou o leigo pressupõem que as escrituras não são alvos de alterações feita por
pessoas com interesses e intenções diversas. Mas a realidade mostra que desde o
início as escrituras bíblicas, tanto do Antigo
Testamento[9] como do Novo Testamento eram alvos de
alterações, interpolações e falsificações.
É constatável, necessita-se insistir, que as pessoas não costumam imaginar que
a Bíblia e mesmo os evangelhos são
composições que reúnem textos escritos em períodos diversos, por pessoas
diversas, por grupos diversos, e com interesses diversos devido à motivos
diversos, devido a várias correntes doutrinárias e ideologias diversas, tendo
passado tanto por sinédrios judaicos desde antes de Jesus como por concílios da
Igreja depois de Jesus. Acrescente-se ainda que os escritos bíblicos antes de serem
textos escritos, foram transmitidos oralmente. Estes processos num todo
oferecem pontos frágeis para deformar em muito a mensagem original do autor de
um dado texto bíblico.
Na própria redação final do Evangelho
de João foi identificado, no capítulo 21, que o texto sofreu alterações:
“A propósito do capítulo 21 se tem indicado a possível presença de outra mão na redação definitiva do Evangelho, a que tem chegado até nós. Esta ‘segunda mão’ parece admitida por todos no que respeita ao adicionado no ‘apêndice’ ou capítulo 21. Mas, ademais, a crítica costuma atribuir à mão que suplementou este último capítulo certos retoques e correções no corpo do Evangelho [...]” (Piñero, p. 397).
Mollat et al. também admite que partes do Evangelho de João são
inconciliáveis para serem escritos por uma única pessoa (Mollat et al, p. 1837).
E uma observação do mesmo Mollat et
al. nos traz ao início deste estudo, o qual questiona o sentido da passagem
do Evangelho de João, 4,22, “Porque a salvação vem dos judeus.”, passagem a qual, penso eu, admitindo que
Jesus teria sido uma ruptura com o judaísmo, não faz sentido dentro do que se
entende por ruptura, e dentro de um contexto mais amplo que irei tratar mais
adiante, da disputa entre judeus e romanos, concluo que é muito possível ter
ocorrido no Evangelho de João a inserção da passagem “Porque a
salvação vem dos judeus” para poder colocar os cristãos e a vasta
diversidade de pagãos vivendo no Império Romano ao lado dos judeus e não dos
romanos.
Vamos ver a observação de Mollat et al.,
este estudioso das escrituras joaninas, sobre a personalidade do último redator do Evangelho de João:
“[...] era judeu cristão que se esforçou para rejudaizar o evangelho por meio de retoques de amplitude menor.” (Mollat et al., p. 1838).
Interessante o termo utilizado por Mollat et al., ‘rejudaizar’, ou seja, poderia então ter havido uma ruptura
entre cristãos e judeus em algum nível, possivelmente relevante, a qual depois,
ao meu entender, conforme o cristianismo ganhava força, estaria sendo atenuada
pelos judeus ou simpáticos do judaísmo ao inserirem passagens, através de
interpolações, que fossem direcionadas aos pagãos e cristãos a não deixarem de
considerar os judeus como o verdadeiro ‘povo eleito’, uma vez que para as pretensões
judaicas, como iremos ver, de tomarem de Roma a posição de maior força do
mundo, seria preciso ter todo tipo de apoio.
Dando consistente respaldo à esta leitura histórica estão mais duas considerações.
A primeira é pelo fato de que o cristianismo surgiu com um dentre vários
outros movimentos messiânicos judaicos, cujos adeptos estavam impregnados da
expectativa judaica de domínio universal por serem os judeus o alegado ‘povo
eleito de Deus’, e ruptura entre judeus e cristãos possivelmente iniciada por
Jesus não ocorreu de uma só vez, mas sim gradualmente, com as hostilidades
judaicas aos cristãos tonando-se explosivas em cerca de 50 d.C., e havendo a
exclusão dos cristãos da sinagoga ao redor de 85-90 d.C. (Mateos, p. 231).
A segunda é que no próprio processo de desenvolvimento do cristianismo a
narrativa exclusivamente judaica do universo, da divindade, do mundo e dos
povos, foi inevitável, pois ao
mesmo tempo que as doutrinas cristãs se difundiam pela oralidade nos dois
primeiros séculos da era cristã, os cristãos, por outro lado, enquanto ainda
não possuíam em forma escrita o Novo
Testamento, optaram como material escrito para seus estudos de formação
unicamente o Antigo Testamento
(Barrera, p. 276), dispensando todos escritos de outras tradições do mundo. É
comum um católico não desatento advertir que os atuais evangélicos dão
demasiada importância ao Antigo Testamento
em detrimento do Novo Testamento,
mas, todavia, esquecem que os núcleos cristãos iniciais no que concerne a
referências escritas, experimentaram aproximadamente dois séculos de
doutrinação exclusiva no Antigo
Testamento.
Portanto, chegamos a uma leitura histórica que evidencia durante a
formação do cristianismo duas correntes se antagonizando, uma, a da ruptura do
cristianismo com o judaísmo, outra, a da constante reconciliação do judaísmo
com o cristianismo, que é melhor expressada pela afirmação de Mollat et al. usada para se referir aos ajustes
e alterações no Evangelho de João,
conforme exposto acima: ‘rejudaizar’ o evangelho.
Como iremos ver mais à frente, várias outras etapas importantes da
formação do cristianismo tiveram como tema central de disputas o que podemos
chamar como ‘rejudaização’, ‘continuidade entre judaísmo e cristianismo’, ‘unidade
entre Antigo Testamento e Novo Testamento’, ‘manutenção do
cristianismo como religião vinculada ao acordo de Abraão com Deus’.
Continua em Cristianismo – uma ruptura total ou parcial com o judaísmo? - Parte 3 - Por Mykel Alexander
Notas
[6] Dicionário Houaiss, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2001, 1ª
edição. Ver vocábulo sinóptico.
[7] Há mais de 2000 manuscritos gregos
dos sinóticos em grego escritos em pergaminho, procedentes do 4º ao 14º século.
Os testos utilizados para o estudo dos sinóticos ou para a tradução para as
línguas modernas são os dois mais antigos do mencionado apanhado, o que é
provavelmente do mosteiro de Santa
Catarina do Sinai (atualmente no Museu Britânico) e o Vaticano (atualmente na Biblioteca Vaticana). Ambos são datados de
meados do século IV (École Biblique, p. 1691).
[8] Isto é uma insistência de vincular
o cristianismo com o judaísmo no Evangelho
de João em que é atribuído à
Jesus as seguintes passagens proferidas para os judeus:
“Moisés vos deu a Lei? No entanto
nenhum de vós pratica a Lei. Por que procurais matar-me?” (João 7,19).
“Se um homem é circundado em dia de
sábado para que não se transgrida a Lei de Moisés, por que vos irais contra
mim, por ter curado um homem todo no sábado?” (João 7,23)
[9]
Ver estudo sobre
falsificações do Antigo Testamento em
Rusell Gmirkin, Berossus and Genesis, Manetho and Exodus: Hellenistic
Histories and the Date of the Pentateuch, editor T&T Clark, 2006.
Ver também Êxodo recorrente: Identidade judaica e
Formação da História - Por Andrew Joyce
Bibliografia:
Douglas Reed, The Controversy of Zion, Editora Veritas, Bullsbruck.
Simon Dubnow, Manual de la Historia Judia – (desde los origenes hasta nuestros dias), Editorial S. Sigal, 4ª edição, Buenos Aires, 1955. Tradução de Salomon Resnick.
The Jewish Encyclopedia – 12 volumes (editado por Isidore Singer), Kitav Publishing House, Inc, Nova Iorque, 1901-1906.
Bíblia de Jerusalém, Editora Paulus, 1ª edição, 12 ª reimpressão, São Paulo, 2017.
Franz Altheim, Historia de Roma – 3 volumes, Editora Uteha, Cidade do México, 1961/1964. Traduzido por Carlos Gerhard da 2ª edição original alemã Römische Geschichite, Editora Walter de Gruyter, Berlim.
Christopher P. Jones, Between pagan and christian, Harvard University Press, Massachusetts, 2014.
Julio Trebolle Barrera, A Bíblia judaica e a Bíblia Cristã – Introdução à história da Bíblia, Editora Vozes, Petrópolis, 1999, 2ª Edição. Traduzido da edição espanhol por Pe. Ramiro Mincato.
Antonio Piñero, Guía para entender el Nuevo Testamento, Editorial Trotta, Madrid, quarta edição, 2011.
Shlomoh Ben-Ami, Fuentes del Cristianismo, Antonio Piñero (editor), Ediciones El Almendro, Madrid, 1993. Capítulo “Palestina em el primer siglo de la era comum.”
Aaron Oppenheimer, Fuentes del Cristianismo, Antonio Piñero (editor), Ediciones El Almendro, Madrid, 1993. Capítulo “Sectas judias en tiempos de Jesus: fariseos, saduceos, los ‘amme ha’aretz’.”
Juan Mateos, Fuentes del Cristianismo, Antonio Piñero (editor), Ediciones El Almendro, Madrid, 1993. Capítulo “El Evangelio de Juan.”
Robert Henry Lightfoot, St. John Gospel – a commentary, Clarendon Oxford Press, Oxford, 1957.
John J. Clabeaux, ‘Abraham in Marcion’s Gospel and Epistles: Marcion and the Jews’ em When Judaism & Christianity Began – Essays in Memory of Abthony J. Saldarini – Volume One –Christianity in the Beginning – (editado por Alan J. Avery-Peck, Daniel Harrington & Jacob Neusner), Supplements to the Journal for the Study of Judaism, vol. 85, Editora Brill, Leiden . Boston, 2004.
José Montserrat Torrents, Los Gnósticos, vol. 1/2, Editorial Gredos, Madrid, 1983.
Rainer Daehnhardt, Páginas Secretas da História de Portugal, Publicações Quipu, Lisboa, 1ª Edição, 1998. (especialmente o capítulo ‘O secretismo acerca dos vândalos’.)
Gustave Bardy, La Conversion al Cristianismo durante los primeiros siglos, Ediciones Encuentro, Madrid, 1990. Traduzido da edição francês, La conversion au Christianisme durant les premiers siècles, 1961, Desclée de Brower, Paris.
Mircea Eliade, Mito e Realidade, Editora Perspectiva, São Paulo. 6ª edição, 4ª reimpressão, 2000. Traduzido da edição inglesa de 1963 por Pola Civelli.
Mircea Eliade, História das Crenças e das Ideias Religiosas – 3 volumes, Editora Zahar, Rio de Janeiro, 2011. Tradução do original em francês de 1978 por Roberto Cortes Lacerda.
Andrew Joyce, The Occidental Observer (07/01/2017), Êxodo recorrente: Identidade judaica e Formação da História. Traduzido por Mykel Alexander.
M. Tulio Cicerón, Discursos III, Editorial Gredos, Madrid, 1991. Tradução do latim, introdução e notas por Jesús Aspa Cereza.
Santo Agostinho, A Cidade de Deus, Volume II (Livro IX a XV), Editora Calouste Gulbenkian, 2ª Edição, Lisboa, 2000. Tradução por J. Dias Pereira, a partir do original latino intitulado De Civitate Dei baseada na edição de B. Dombart e A. Kalb.
Santo Agostinho, A Cidade de Deus, Volume III (Livro XV a XXII), Editora Calouste Gulbenkian, 2ª Edição, Lisboa, 2000. Tradução por J. Dias Pereira, a partir do original latino intitulado De Civitate Dei baseada na edição de B. Dombart e A. Kalb.
Dicionário Houaiss, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2001, 1ª edição.
The Cambridge Dictionary of Judaism & Jewish Culture, Cambridge University Press, Nova Iorque, 2011, (editado por Judith R. Baskin, Universidade de Oregon).
Sobre o autor: Mykel Alexander é licenciado em História (Unimes), Bacharel em Farmácia (Unisantos) e está no último semestre de licenciatura em Filosofia (Unimes).
_________________________________________________________________________________Relacionado, leia também:
Êxodo recorrente: Identidade judaica e Formação da História - Por Andrew Joyce
Controvérsia de Sião - por Knud Bjeld Eriksen
Politeísmo e Monoteísmo - Por Mykel Alexander
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Os comentários serão publicados apenas quando se referirem ESPECIFICAMENTE AO CONTEÚDO do artigo.
Comentários anônimos podem não ser publicados ou não serem respondidos.