domingo, 24 de maio de 2020

Tucídides e a praga de Atenas - o que isso pode nos ensinar agora - Por Christopher Mackie


Christopher Mackie

O coronavírus está concentrando nossas mentes na fragilidade da existência humana em face de uma doença mortal. Palavras como “epidemia” e “pandemia” (e ‘pânico’!) têm se tornado parte do nosso discurso diário.

Estas palavras são gregas em origem e apontam para o fato de os gregos da antiguidade pensaram muito sobre doença, quer no seu sentido puramente médico, quer como metáfora para a condução mais ampla dos assuntos humanos. O que os gregos chamavam de “praga” (loimos) aparece em algumas passagens memoráveis da literatura grega.

Uma de taus descrições situa-se logo no início da literatura ocidental. A Ilíada de Homero[1] (cerca de 700 a. C.) começa com uma descrição de uma praga que atinge o exército grego em Troia. Agamenon, o príncipe líder do exército grego, insulta um sacerdote local de Apolo chamado Crises.

Apolo é o deus da praga – um destruidor e curandeiro – e castiga todos os gregos enviando uma pestilência entre eles. Apolo é também o deus arqueiro, e ele é representado atirando flechas no exército grego com um efeito terrível:
Baixou do alto do Olimpo, coração colérico, levando aos ombros o arco e a aljava bem fechada.
À espádua do Iracundo retiniam as flechas, enquanto o deus movia-se, ícone da noite.
Sentou longe das naus: então dispara a flecha.
Honoríssimo clangor irrompe do arco argênteo.
Fere os mulos; depois, rápida prata, os cães; então mira nos homens, setas pontiagudas lançando: e ardem sem pausa densas piras fúnebres.[2]

Narrativas de pragas

Cerca de 270 anos após a Ilíada, ou a partir de então, a praga é o ponto central de duas grandes obras clássicas de atenienses – Édipo rei, de Sófocles[3], e o Livro 2 da História da Guerra do Peloponeso, de Tucídides[4].

Tucídides escreve prosa, não verso (como Homero e Sófocles fazem), e ele trabalhou no campo relativamente novo da “história” (que significa “inquérito” ou “pesquisa” em grego). Seu foco era a guerra do Peloponeso travada entre Atenas e Esparta e seus respectivos aliados, entre 431 e 404 a.C.

A descrição de Tucídides da praga que atingiu Atenas em 430 a.C. é uma das grandes passagens da literatura grega. Uma das coisas notáveis sobre o assunto é como ele se concentra na resposta social geral à pestilência, tanto dos que morreram quanto dos que sobreviveram.

Pintura representando uma praga antiga, de Peter van Halen.


Uma crise de saúde

A descrição da praga segue imediatamente sobre o relato renomado de Tucídides da Oração Funeral de Péricles (é importante dizer que Péricles morreu da praga em 429 a.C., enquanto Tucídides a pegou, mas sobreviveu).

Tucídides faz um relato geral dos estágios iniciais da praga – com origens prováveis no norte da África, sua propagação nas regiões mais amplas de Atenas, as lutas dos médicos para lidar com isso e a alta taxa de mortalidade dos próprios médicos.

Nada parecia melhorar a crise – nem conhecimento médico ou outras superadas por seus sofrimentos que não deram mais atenção a tais coisas”.

Ele descreve os sintomas em alguns detalhes – a sensação de queimação de pessoas que sofrem, dores de estômago e vômitos, o desejo de ficar totalmente nu, sem nenhum linho sobre o próprio corpo, a insônia e a inquietação.

O estágio seguinte, após sete ou oito dias, se as pessoas sobreviverem por tanto tempo, via a pestilência descer para os intestinos e outras partes do corpo – órgãos genitais, dedos das mãos e pés. Algumas pessoas até ficaram cegas.
O caráter da doença desafia qualquer descrição, sendo a violência do ataque, em geral, grande demais para ser suportada pela natureza humana;[5]
Aqueles com constituições fortes não sobreviveram melhor que os fracos. 
Mas o aspecto mais terrível da doença era a apatia das pessoas atingidas por ela, pois seu espírito se rendia imediatamente ao desespero e elas se consideravam perdidas, incapazes de reagir. [6]
Por fim, Tucídides se concentra no colapso dos valores tradicionais, onde a autoindulgência substituía a honra, onde não existia medo de Deus ou do homem.
ninguém esperava estar vivo para ser chamado a prestar contas e responder por seus atos; ao contrário, todos acreditavam que o castigo já decretado contra cada um deles e pendente sobre suas cabeças, era pesado demais, e que seria justo, portanto, gozar os prazeres da vida antes de sua consumação.[7]
Toda a descrição da praga no Livro 2 dura somente cerca de cinco páginas, embora pareça mais longa.

O primeiro surto de praga durou dois anos, após o que ocorreu uma segunda vez, embora com menos virulência. Quando Tucídides capta muito brevemente o fio da praga um pouco depois (3,87), ele fornece um número de mortos: 4.400 hoplitas (cidadãos-soldados), 300 cavaleiros e um número desconhecido de pessoas comuns.
Os atenienses foram mais castigados por ela que por qualquer outra calamidade, e sofreram um golpe sumamente nocivo ao seu poder de luta.[8]

Uma lente moderna

Os estudiosos modernos discutem[9] sobre a ciência de tudo isso, principalmente porque Tucídides oferece uma quantidade generosa de detalhes dos sintomas.

O Tifo epidêmico e varíola são os mais favorecidos, mas cerca de 30 doenças diferentes foram postas[10].

Tucídides nos oferece uma narrativa de uma pestilência que é diferente em todos os tipos de formas do que enfrentamos.

As lições que aprendemos da crise do coronavírus virão de nossas próprias experiências, e não da leitura de Tucídides. Mas estes não são mutuamente exclusivos. Tucídides nos oferece uma descrição de uma cidade-estado em crise que é tão comovente e poderosa agora, como era em 430 a.C.

Tradução de Leonardo Campos (via Sentinela)
Revisão e edição de Mykel Alexander


Notas


[1] Fonte utilizada pelo autor: Homer, The Iliad, tradução de Samuel Butler.

[2] Nota de Mykel Alexander: Homero, Ilíada, editora ARX, 5ª edição, São Paulo, tradução de Haroldo de Campos. Livro 1, 44-52.

[3] Fonte utilizada pelo autor: Plays of Sophocles: Oedipus the King; Oedipus at Colonus; Antigone by Sophocles.

[4] Fonte utilizada pelo autor: The History of the Peloponnesian War by Thucydides.

[5] Nota de Mykel Alexander: Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, UNB, Brasília, 1982, Tradução de Mário da Gama Cury. Livro II, 50.

[6] Nota de Mykel Alexander: Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, UNB, Brasília, 1982, Tradução de Mário da Gama Cury. Livro II, 51.

[7] Nota de Mykel Alexander: Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, UNB, Brasília, 1982, Tradução de Mário da Gama Cury. Livro II, 53.

[8] Nota de Mykel Alexander: Tucídides, História da Guerra do Peloponeso, UNB, Brasília, 1982, Tradução de Mário da Gama Cury. Livro III, 87.

[9] Fonte utilizada pelo autor: The Plague at Athens, 430-427 BCE, por John Horgan, 24 de agosto de 2016, Ancient History Encyclopedia.

[10] Fonte utilizada pelo autor: J.R. Sallares, The Ecology of the Ancient Greek World Hardcover, Gerald Duckworth & Co Ltd, 1991.


Fonte: O que a peste de Atenas nos pode ensinar sobre o Coronavírus hoje? – por Chris Mackie, 22 de abril de 2020, O Sentinela – mídia crítica independente.

Originalmente publicado como Thucydides and the plague of Athens - what it can teach us now, Chris Mackie, 19 de março de 2020, The Conversation.


Sobre o autor: Christopher Mackie, original de Melbourne, Australia, é Professor de Clássicos, Universidade La Trobe. Estudou na Universidade de Newcastle, N.S.W e na Universidade de Glasgow. Trabalhou na Universidade da Nova Inglaterra, na Universidade de Melbourne. Atualmente é Professor de Estudos Gregos e Diretor da Escola de Ciências Humanas da Universidade La Trobe.
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