Mykel Alexander |
Disputas
para definir o que é cultura
Quando
se estuda o significado de uma palavra, adentra-se no ramo dos estudos
linguísticos denominado de semântica,
o qual se ocupa dos processos que concorreram para gerar o significado de uma
palavra, e para isso a semântica se vale de várias áreas do saber, obviamente
das regras linguísticas, bem como da História, Filosofia, Filologia,
Arqueologia, entre outras.
Se
por um lado, há o uso múltiplo da palavra cultura,
por outro lado, há uma profundidade e complexidade implícita em algumas das
definições acima elencadas, e parte desta complexidade é que nas definições em
questão se recorre a vocábulos que em si são de longínqua origem e também, como
a palavra cultura, adquiririam vários
significados, isto é, são as denominadas palavras polissêmicas, como é o caso
da palavra arte, no item ‘f’, ou da palavra tradição, no item ‘e’, as
quais foram, como não é raro, perdendo através do tempo seu significado
original e adquirindo outros significados. É digno de observação que especialmente
a palavra arte, caso fosse aqui
examinada, também traria amplos significados, semelhante ao que ocorre com a
palavra cultura.
Tanto
por aprofundamento como por diversificação a palavra cultura tem adquirido uma variedade espantosa de significados. Josep
Picó, catedrático de Sociologia na Universidade de Valencia, observa:
“[...] recentemente o termo cultura tem se convertido na pátria comum de toda classe de discursos públicos e tem saltado do campo acadêmico a terrenos até agora desconhecidos como a política, a economia, a saúde, ou inclusive hostis a sua própria definição como a delinquência. Não parece que haja um limite em sua aplicação a quase todos os contextos sociais [...] tudo o qual tem contribuído para esvaziar seu conteúdo tradicional mais específico. A medida que se usa com mais frequência, mais necessita de um qualificativo para definir seu campo de aplicação. [5]”
Picó se pergunta se existe algum fio condutor pelo qual a
palavra cultura atravessou a
história, seja conservando seu fundamento original ou ao menos numa
continuidade de suas diversas transformações[6]. Na apuração a tal
indagação encontramos as transformações de significados que a palavra cultura experimentou.
De
modo geral os estudos sobre o significado de cultura evidenciam que há apenas pouco mais de 100 anos, durante o século
XIX, as concepções do que significava cultura
eram bem menos numerosas do que são na atualidade. A definição ‘c’ para a palavra cultura extraída do dicionário Houaiss,
“O cabedal de conhecimentos, a ilustração, o saber de uma pessoa ou grupo
social.”, possivelmente foi a que prevaleceu no Ocidente durante o século XX, e
frequentemente é a definição que a maioria das pessoas nascidas no século XX
associam à palavra cultura. Esta
definição ‘c’ para a palavra cultura seria o ponto de partida na
atualidade para uma pessoa mediana e com instrução escolar não deficiente, e
com o mínimo hábito de leitura no decorrer da vida.
Contudo
a definição ‘c’ por mais que tenha se
consolidado entre as massas, passou ser desafiada gradualmente durante o século
XX, e lentamente perdendo-se na multidão de definições propostas para a palavra
cultura, dando a impressão de que se
trata de um processo que não para de crescer conforme avançamos através século
XXI. É muito instrutiva a explicação de Picó sobre a dinâmica que subjaz tal
diversidade de propostas pretendendo afirmar o que seria ou o que não seria cultura:
“As mudanças semânticas, em aparência de natureza puramente simbólica, correspondem, em realidade, a mudanças de outra ordem, a mudanças na estrutura das relações de força entre os grupos sociais que protagonizam o governo da sociedade, por uma parte, e entre as sociedades e seu posicionamento internacional, por outra. Nesse sentido a cultura, sua gênese, mudança e evolução têm tido diversas acepções e significados ao longo da época histórica que temos denominado modernidade, e em seu seio tem sido porta-voz e bandeira de luta que percorrem nossa história mais recente e desvelam seus anseios e contradições.[7]”
Na
colocação acima pode-se extrair inferências imediatas bem como algumas
considerações implícitas que exigem um aprofundamento.
Como
inferências imediatas Picó alude:
a)
Às mudanças no significado, isto é, na semântica, da palavra cultura não apenas por simples
substituição decorrentes dos efeitos do tempo na memória das pessoas, mas
devido a existência de uma luta, uma disputa para definir e fixar o que
significa a palavra cultura.
b)
Estas disputas, em primeiro lugar, ocorriam dentro de cada Estado, e em segundo
lugar entre os Estados. Sendo mais preciso, estas disputas desvelam que eram
motivadas por “anseios” e por “contradições” provenientes dos grupos que
lideram a sociedade dentro de cada Estado, resultando que cada Estado terá uma
concepção do que é cultura conforme
esta seja definida tanto pelas lideranças governamentais como
não-governamentais do Estado. Os Estados, no decorrer da Idade Moderna e da
Idade Contemporânea, então disputam entre si para impor sobre os outros sua
própria definição de cultura.
Como
considerações implícitas temos duas maneires de nos posicionar.
a)
A de compreender um determinado conceito
ou palavra priorizando apenas o
critério de busca pela verdade, o que implica em se posicionar diante de uma
dada questão, indiferente ao como essa nos agrade ou desagrade, com o máximo de
imparcialidade possível.
b)
O de não estarmos necessariamente
priorizando definir um conceito ou palavra nos baseando na busca pela
verdade do modo mais imparcial possível, mas sim impulsionados por outros
anseios.
Reunindo tanto as inferências imediatas a) e b)
bem como as considerações implícitas a)
e b) pode-se admitir que no
empreendimento de definir um determinado conceito
ou palavra, a humanidade apresentou
basicamente duas linhas através da história: a que se baseia na medida do
possível na imparcialidade em busca pela verdade, e a que que prioriza mais
anseios particulares do que a busca pela verdade.
No
desenvolver desta exposição sobre o que é realmente cultura, até aqui, nos deparamos com a importância da definição no processo de compreensão de
um conceito ou palavra, e recorri à tradição grega antiga ao atentar que a definição de um conceito ou palavra era
uma questão que os gregos deram máxima importância. Depois nos deparamos na
importância da mente, especificamente no que denominei de anatomia da mente, recorrendo
novamente aos antigos gregos, pois estes também deram a máxima importância e
que é a origem arcaica da psicologia ocidental. E agora ao nos depararmos com a terceira questão, a da imparcialidade, após a
constatação de que o tipo de perfil psicológico de um indivíduo pode ser o de imparcialidade
e busca pela verdade ou o de seguir anseios particulares sem rigoroso
compromisso em buscar a verdade, recorro uma vez mais aos gregos antigos, e como observou o
grande historiador da Filosofia do século XIX, o alemão Eduard Zeller
(1814-1908), em seu manual de História da Filosofia, Grundriss der Geschichte der Griechischen Philosophie (1ª edição
1883 e 5ª edição 1898):
“Nunca um povo julgou sua própria natureza e instituições, moral e costumes, os quais ele produziu, com maior imparcialidade que os gregos.[8]”
Alguém
poderia agora afirmar que estou me inclinando a não ser imparcial ao recorrer
aos gregos para me basear em três questões que nos deparamos, a da definição, a da psicologia e a da imparcialidade,
mas ao menos no Ocidente em seus tempos históricos foram os gregos os
precursores em se deterem e desenvolverem com excelência estas três questões. E
se temos por objetivo descobrir o conceito real de cultura devemos necessariamente compreender o conceito em questão e todo o contexto em que tal conceito pertence.
Notas
[5] Nota do autor: Josep Picó, Cultura y Modernidad –
seducciones y desenganos de la cultura moderna, Alianza Editorial, Madrid,
1999, páginas 10-11.
[6] Nota do autor: Josep Picó, Cultura y Modernidad –
seducciones y desenganos de la cultura moderna, Alianza Editorial, Madrid,
1999, páginas 12-13.
[7] Nota do autor: Josep Picó, Cultura y Modernidad –
seducciones y desenganos de la cultura moderna, Alianza Editorial, Madrid,
1999, página 14.
[8] Nota do autor: Eduard Zeller ,Outlines
of the History of Greek Philosophy, The World Publishing Company, 13ª
edição, 15ª impressão, Nova Iorque, 1971. Originalmente escrito em 1883, e traduzido da 13ª
edição alemã, aos cuidados de Wilhelm Nestle, por L. R. Palmer. Página 19).
Em
rigor tal visão se aplica mais ao Ocidente, devido às grandes disputas
ideológicas que surgiram após o fim da Antiguidade ocidental, uma vez que nas
tradições hindus e extremo orientais a imparcialidade também era muito prezada,
e continua em certa medida assim.
Sobre o autor: Mykel
Alexander possui Licenciatura em História (Unimes, 2018), Licenciatura em
Filosofia (Unimes, 2019) e Bacharel em Farmácia (Unisantos, 2000).
O que é realmente “cultura”? - parte 1 - Por Mykel Alexander
Essa ampliação do significado de cultura poderia ser proposital, já que cultura estaria ligado a raças e povos? Seria intenção de alguns que querem um mundo massificado e zumbificado criar confusão sobre o conceito de cultura?
ResponderExcluir"Essa ampliação do significado de cultura poderia ser proposital, já que cultura estaria ligado a raças e povos? Seria intenção de alguns que querem um mundo massificado e zumbificado criar confusão sobre o conceito de cultura?"
ExcluirÉ de fato uma observação procedente sim!
Um dos nomes mais relevantes que lidaram com a relação “cultura e raça”, o judeu Nathan Glazer observou:
“A cultura é uma das categorias explicativas menos favorecidas no pensamento atual. A menos favorecida, claro, é a raça [...] Preferimos não mencioná-la nem usá-la hoje em dia, embora pareça haver uma ligação entre raça e cultura, talvez apenas acidental. As grandes raças, no todo, são marcadas por culturas diferentes, e essa conexão entre cultura e raça é um motivo do nosso desconforto com explicações culturais.”
Artigo de Nathan Glazer “Disaggregating Culture”, em Culture Matters: How Values Shape Human Progress, pp 220-221. Citado por Nicolas Wade em Uma Herança Incômoda – Genes, raça e história humana, editora Três Estrelas, pp 222-223 (capítulo ‘o remodelamento da natureza humana’).
Este exemplo acima é um daqueles das típicas distorções nas investigações, patética e insidiosamente presentes, atendendo interesses diversos, menos a busca pelo rigor investigativo.