sexta-feira, 30 de agosto de 2019

O que é realmente “cultura”? - parte 4 - Por Mykel Alexander


Mykel Alexander
     
Idade Moderna e o clássico

O marco cronológico de transição do fim da Idade Média para o início da Idade Moderna no século XV é objeto de controvérsias, sendo considerados especialmente como marco central:

 a) a Queda do Império Bizantino, quando sua capital, Constantinopla, foi tomada pelos turcos otomanos em 1453;

b) as viagens de Cristovão Colombo iniciadas em 1492;

c) e a rota de Vasco da Gama traçada para a Índia em 1498.

Contudo, para a questão sobre o que é cultura realmente, é fundamental focar no anteriormente acima enumerado marco 3) “Ressurgimento da tradição greco-romana, particularmente sua filosofia e sua ciência.”, um movimento que é celebremente conhecido como Renascimento ou movimento renascentista. Observa Picó que:
“O Renascimento, não obstante, significou o fim do período medieval e o início de uma época nova e renovada através da volta ao clássico.[15]
Mas então nos surge outra questão, central no contexto do Renascimento, a saber, o que é o clássico? Conforme já mencionado tem relação com à tradição greco-romana, ou como no dicionário Houaiss[16] com a tradição greco-latina, uma vez que romano e latino são entendidos quase como sinônimos, e sendo clássico, segundo esse mesmo dicionário, algo que é “fiel”, isto é, verdadeiramente vinculado à tradição greco-latina, ou greco-romana. A palavra clássico é latina em sua origem etimológica, procedendo da palavra classis, que significava “classe” dentro duma graduação da sociedade romana estabelecida no século VI a.C. em Roma por seu rei Sérvio Túlio (578-535 a.C.)[17].

Em latim a palavra clássico era usada como classicus ou classicum ou clássica em suas variações gramaticais, surgindo como uma metáfora, isto é, um uso linguístico em que a significação habitual de uma palavra é substituída por outra, quando o erudito e gramático romano Aulio Gélio, no século II d.C., usa a expressão classicus scriptor para designar um escritor que, pela correção de sua linguagem poderia ser considerado de primeira classe ou de primeira ordem[18]. A passagem que é atribuída como origem da metáfora se dá quando Aulio Gélio ainda jovem buscava sempre que possível absorver os ensinamentos do grande retórico e gramático Frontão Cornélio (também denominado de Marco Cornélio Frontão), e pela sua importância merece ser exposta.

Frontão havia advertido um amigo seu em tom de brincadeira quando este dissera que tinha se curado de uma doença ao recorrer a uma terapia com areia quente, porém usando a palavra “areia” no plural, e o gramático romano observa que ninguém menos que Júlio César (100-44 a.C.), “varão de intelecto superior, de linguagem a mais pura acima dos outros de sua época”, havia já tratado de advertir o erro de colocar a palavra “areia” (harena) no plural, “areias” (harenae), quando aplicada a quantificação, o que colocado num exemplo atual seria como trazer “três quilos de areias” ou “dois sacos de areias”. Então o amigo de Frontão dando outros exemplos recorre à autoridade literária de dois mestres da língua latina, Plauto (séculos III-II a.C.) e Quinto Ênio (séculos III-II a.C.), e pede a Frontão que traga em mãos o exemplar de Júlio César em questão, denominado Da analogia. Contudo ao conferirem o texto de César constatou-se que havia certa inconcludência na questão, e pede a Frontão para este emitir seu parecer, que segundo Aulio Gélio foi o seguinte:
“[...] como harena dita em número singular signifique todavia a grande quantidade e abundância das pequeníssimas partes de que consta, parece que se diz de modo ignorante e sem habilidade harenae, como se esse vocábulo tivesse falta da amplitude do número, quando, dito no singular, lhe seja naturalmente inata a ideia de plural.”
            Após dar exemplos de variações gramaticais, Frontão explicando ao seu amigo conclui:
“Essas coisas todas não podem ser procuradas, digo, e explicadas e expostas por homens ativos em cidade tão ocupada. [...] Ide portanto agora e, quando por acaso houver vagar, procurai se daquela coorte pelo menos mais antiga quadriga [um dos vocábulos discutidos que omiti] e harenae tenha dito ou algum dos oradores e poetas, isto é, algum clássico [classicus] e abonado escritor, e não um pobretão [proletarius].[19]
“[...] Id est classicus adsiduusque aliquis scriptor, non proletarius[20]” é o original em latim para a frase que contém a metáfora, que é traduzida como “[...] isto é, algum clássico e abonado escritor, e não um pobretão.”

         Eis a origem que a crítica classicista acadêmica atribui à metáfora clássico [clássicus]! Ela surge no ambiente romano de idioma latim e que tinha o idioma grego como um segundo idioma, especialmente na parcela instruída da população, e com o passar do tempo essa expressão vai se consolidando entre os eruditos de Alexandria, no Egito, então o maior centro de saber do Império Romano neste período, donde afluíam muitos gregos que também admiravam as realizações do período glorioso de Atenas nos séculos e V e IV a.C., de modo que tal corpo de eruditos selecionava os escritores greco-latinos considerados modelares, isto é, como sendo os portadores de um padrão de excelência e modelo de referência.

E esse modelo de referência não era apenas na literatura e nas artes, mas também na formação do próprio homem, conforme coloca o grande filólogo alemão, que fora da Universidade de Berlim e de Harvard, Werner Jaeger (1888-1961):
“Os gregos posteriores, do início do Império, foram os primeiros a considerar como clássicas, naquele sentido intemporal, as obras da grande época de seu povo, quer como modelos formais da arte quer como protótipos éticos. Neste tempo em que a história grega desembocou no Império Romano e deixou de constituir uma nação independente, o único e mais elevado ideal da sua vida foi a veneração de suas antigas tradições.[21]
Se o retorno ao clássico, isto é, o retorno à excelência estimada pelos greco-romanos é o que marca o movimento renascentista, ou em outra palavra o Renascimento, ocorrido durante a transição da Idade Média para a Idade Moderna, é preciso ter em conta que este processo não foi algo repentino, mas se manifestava já no século XIV e perdurou até o século XVII. Como a superficialidade e desinformação dos tempos atuais tendem a apagar rapidamente a memória da tradição humana será producente para a compreensão do que realmente é cultura nos determos nos desafios que a tradição do que é clássico percorreu através dos séculos até ser novamente valorizada no Renascimento.

Como mencionado, Aulio Gélio no século II d.C. ao remontar aos feitos literários antigos como modelo de referência literária, havia inaugurado a metáfora classicus scriptor em que classicus posteriormente se consolidou através dos eruditos de Alexandria não apenas na literatura, mas em todos os feitos da antiguidade greco-romana, incluindo a filosofia, arquitetura, arte entre outros campos da criação humana. Mas têm as pessoas atualmente uma estimativa do que a Antiguidade greco-romana desenvolveu e que influiu ou contribuiu para os grandes feitos da humanidade?

Sobre a temática dos grandes feitos da humanidade Charles Murray (1943-), bacharel em História em Harvard, escreveu Human Accomplishment – The Pursuit of Excellence in the Arts and Sciences, 800 B.C to 1950, de 2003, talvez a mais importante obra desta temática no século XXI. Num de seus capítulos Murray expõe um ranking com 20 nomes dos gigantes nas várias áreas do saber.

Na área da Astronomia[22] o italiano Galileu Galilei (1564-1642) e o alemão Johanes Kepler (1571-1630) ocupam respectivamente as duas primeiras posições e o polonês Nicolau Copérnico (1473-1543) ocupa a quinta posição, mas deve-se registrar que Copérnico e Kepler, fora seus méritos próprios, recorreram ao legado greco-romano centrado em Pitágoras e Platão[23].  Os gregos Cláudio Ptolemeu (90-168 d.C.) e Hiparco de Niceia (190-120 a.C.) também estão na lista, ocupando a sexta e décima posição respectivamente. É incompreensível, tendo em conta os méritos, a ausência do astrônomo e matemático Aristarco de Samos (310-230 a.C.) nessa lista, uma vez que é considerado o primeiro ocidental a registrar contundentemente o sistema heliocêntrico[24].

Na área da Biologia[25] Charles Darwin (1809-1882) ocupa a primeira posição, sendo seguido por Aristóteles (384-322 a.C.) na segunda posição. É importante registrar que embora não presente na lista, o grego Teofrasto (372-287 a.C.), o sucessor de Aristóteles na escola deste, avançou na biologia os estudos de seu mestre.

Na Matemática[26] o suíço Leonhard Euler (1707-1783) ocupa a primeira posição, Euclides de Alexandria (Século III a.C.) está na terceira posição, enquanto Diofanto de Alexandria (século III d.C.) e Arquimedes de Siracusa (século III a.C.) ocupam respectivamente as 13ª e 20ª posições. A matemática, sem entrar nos méritos dos que precederam os gregos, vinha na tradição grega acumulando uma sucessão de desenvolvimentos profundos, especialmente na corrente pitagórica-platônica[27], mas diz Murray (p. 127) que para além das contribuições originais de Euclides, este teve o grande mérito reunir e sintetizar grande parte do conhecimento de seu tempo, o qual se tornou um padrão na geometria por mais de 2 mil anos.

Na Medicina[28] o francês Louis Pasteur (1822-1895) ocupa a primeira posição, seguido pelo grego Hipócrates de Cós (460-370 a.C.) na segunda posição, enquanto o greco-romano Cláudio Galeno (129-217 d.C.) ocupa a quarta posição.

Na Tecnologia[29] o escocês James Watt (1736-1819) e o americano Thomas Edison (1847-1931) ocupam o primeiro posto empatados, o italiano Leonardo da Vinci (1452-1519) segue em terceiro lugar, enquanto Arquimedes de Siracusa (século III a.C.) e o romano Marcus Vitruvius (século I a.C.) ocupam respectivamente a quinta e sétima posição. Dois nomes greco-romanos que poderiam estar nessa lista certamente são os de Heron de Alexandria (século I d.C.) que dentre vários trabalhos desenvolveu mecanismos a vapor, os primeiros registrados na história, e o pitagórico Arquitas de Tarento (428 a.C.-347 a.C.), um matemático e multicientista, porém a perda de grande parte dos escritos de ambos possivelmente tenha afetado a revalorização contemporânea de seus nomes.

Nas ciências combinadas[30] o inglês Isaac Newton (1643-1727) está em primeiro lugar, seguido pelo já citado italiano Galileu Galilei (1564-1642) em segundo lugar e por Aristóteles (384-322 a.C.) em terceiro lugar, enquanto Cláudio Ptolemeu (90-168 d.C.) e Euclides de Alexandria (Século III a.C.) ocupam respectivamente as 12ª e 19ª posições. Novamente não seria injustiça incluir o matemático e multicientista pitagórico Arquitas de Tarento (428 a.C.-347 a.C.).

Na Música ocidental o alemão Ludwig van Beethoven (1770-1827) e o austríaco Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) ocupam juntos o primeiro posto, seguidos pelos alemães Johann Sebastian Bach (1685-1750) e Richard Wagner (1813-1883) na 3ª e 4ª posição respectivamente, ficando o austríaco Joseph Haydn (1732-1809) e o alemão Georg Friedrich Händel (1685-1759) nas 5ª e 6ª posições respectivamente. Das áreas da criação humana elencadas por Murray, apenas a música é a que se pode permitir os feitos do Ocidente não serem tributários dos greco-romanos. Kahn explica[31] que a teoria pitagórica para a prática musical prevaleceu até o período do Renascimento, quando a geração de gênios germânicos acima mencionados avançou sumamente os desenvolvimentos musicais, mas o conceito de excelência greco-romano ainda nesta área é homenageado, pois de tão sumamente excelente, de primeira classe, é a arte destes gênios germânicos que sua música é justamente denominada de clássica.

Na Arte ocidental[32] o italiano Michelangelo di Lodovico (1475-1564) está em primeiro lugar, seguido pelo espanhol Pablo Ruiz Picasso (1881-1973) em segundo lugar, pelo italiano Rafael Sanzio (1483-1520) em terceiro lugar, e pelo também italiano Leonardo da Vinci (1452-1519) em quarto lugar. Três pontos devem ser aqui observados

a) O primeiro é referente à ausência tanto dos mestres gregos, como por exemplo Fídias (480-430 a.C.), Míron (século V a.C.) ou Lísipo  (século IV a.C.), explicada por Murray (p. 137) ser não devido à falta de méritos deles, mas sim por termos deles, em geral, apenas uma estimativa de sua capacidade através das cópias disponíveis em tempos posteriores ao invés dos originais já indisponíveis, bem como pela ausência dos mestres artistas romanos, e neste caso é devido a estes que se pode estimar as artes dos mencionados gregos nas produções de estátuas romanas, todavia são raros os nomes de artistas romanos registrados historicamente, uma vez ser a arte em questão institucionalizada em Roma, tendo esta o mérito da difusão e reprodução da arte grega e não uma nova fonte de originalidade. Contudo não se pode desconsiderar que os romanos possam ter visto no gênio grego o patamar de excelência, e por isso mais importante seria reproduzi-lo do que tentar outras variações.

b) É fundamental observar que os três mencionados artistas italianos tiveram entre tantos méritos o de resgatar a arte clássica a qual foi grande e decisiva influência no gênio deles, e em muitas expressões renascentistas o mérito é equiparar-se a excelência grega, conforme fizeram os romanos, porém numa época em que isso não era difundido, daí a fama alcançada no período renascentista com seus principais gênios vanguardistas, enquanto as cópias de alto nível posteriores tendiam ao anonimato conforme o retorno ao classicismo ia se institucionalizando através da Europa na Idade Moderna e posteriormente nos EUA na virada do século XIX para o XX.

c) O terceiro ponto refere-se a presença de Pablo Picasso, estimado pelos anticlassicistas que celebraram a ruptura que sofreu o retorno do classicismo no final do século XIX e início do século XX decorrente da difusão modernista em que Picasso era um vanguardista.

Na Literatura ocidental[33] o inglês William Shakespeare (1564-1616) ocupa o primeiro lugar, o alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) segue em segundo lugar, e o italiano Dante Alighieri (1265-1321) em terceiro lugar, enquanto que o romano Virgílio (70 a.C. 19 d.C) está em quarto lugar e Homero, que seria um indivíduo grego que transcreveu uma longa e arcaica tradição oral grega, ocupa a quinta posição, ainda constando o romano Horácio (65-8 a.C) e o grego Eurípides (480-406 a.C.) respectivamente nas 16ª e 17ª posições. É preciso também nessa área fazer algumas observações. A primeira é quanto ao rigor métrico da poesia grega e posteriormente latina, a segunda quanto a profundidade e abrangência do conteúdo nos diversos estilos literários greco-romanos, tais como o épico, a tragédia, a comédia entre outros os quais não se esgotam as descobertas de quão elaboradas e profundas eram, a terceira é que especialmente no caso de Homero, a importância deste foi de forjar a formação do povo grego em seus primórdios, e por grego entende-se não todos habitantes da região grega, mas sim a linhagem sanguínea, a raça conhecida como helênica.


Mas quem são os helênicos? Segundo a tradição mitológica greco-romana, do deus Prometeu e da ninfa Clímene nasceu Deucalião; e após um mencionado dilúvio lançado por Zeus para aniquilar a raça nascida do sangue dos gigantes, então de Deucalião e sua prima Pirra, que era mortal, nasceram Helenos (Ἕλληνος), progenitor da estirpe dos eólios, Anfictião, progenitor dos beócios e tebanos, e uma irmã, Protogênia, progenitora da estirpe dos etólios[34].  

Vivendo na Tessália, norte da Grécia, Heleno junto com a ninfa Orseis, deram origem a Doro, Xuto e Éolo.

Doro foi fundador da estirpe dórica que passou a viver na Grécia central;

De Xuto, que passou a viver no Peloponeso, ao sul, e Creusa nasceram Ion fundador da estirpe jônica, e Aqueu, fundador da estirpe aqueia.

Éolo foi fundador da estirpe eólia, e viveu na própria Tessália.

Foi assim então que “Heleno pois seu nome, chamando-los Helenos, a quem antes se chamavam gregos.”, conforme a tradição greco-romana, explica o grande mitólogo espanhol  Antonio Ruiz de Elvira (1923-2008) [35].

Paralelamente à mitologia dão suas interpretações a História, a Filologia e a Arqueologia. Antes de 2500 a.C. na região da Grécia havia os povos pré-helênicos, denominados pelos próprios helenos de modo generalizado como pelasgos. Os povos que seriam historicamente correspondentes aos helenos mitológicos teriam vindo do norte, pertencendo ao grupo linguístico conhecido como indo-europeu ou ariano, que além dos gregos / helênicos, são os célticos, germânicos, eslavos e itálicos, entre outros, e teriam se fixado na região da Tessália, corroborando a mitologia, e isso, para além da investigação contemporânea, segundo uma própria referência da Antiguidade, Tucídides, e daí se espalhando pela Grécia[36]Eólios, dórios, jônios e aqueus seriam posteriormente grupos helênicos também registrados como os principais grupos que compunham os povos da Grécia na perspectiva histórica, porém com uma sincronia não exata com a mitologia, o que traz considerações e implicações que vão além do necessário aqui.

Na célebre obra do século XX sobre a educação grega, Paidéia – A Formação do Homem Grego[37], do alemão Werner Jaeger (1888-1961), os capítulos que tratam da origem e da educação da tradição homérica bem como sua importância para o Ocidente são indispensáveis se realmente se quer começar a entender tal contexto. A busca pela excelência, isto é, a arete / ἀρετή, que a tradição helênica prima, se apresenta em várias expressões do saber e do labor, sendo uma marca dos arianos, isto é, dos indo-europeus, sejam helênicos ou romanos, germânicos ou italianos, e talvez por isso quando uma área da criação humana tenha atingido a plenitude, como os gregos na Filosofia ou os romanos na política e domínio imperial, os arianos sucessores, absorvem o que já não se pode melhorar significantemente, e levam à frente o que se poderia melhorar, como fizeram nas artes plásticas e musicais respectivamente italianos e germânicos, bem como nas ciências em geral os europeus como um todo, o que inclui-se aí particularmente britânicos, germânicos, escandinavos, holandeses, franceses e italianos.

Nas duas extrações abaixo de Jaeger se percebe o nascimento da identidade helênica / grega inseparável do compromisso com a excelência, isto é, da arete:
“A história da formação grega – o aparecimento da personalidade nacional helênica, tão importante para o mundo inteiro – começa no mundo aristocrático da Grécia primitiva com o nascimento de um ideal definido de homem superior, ao qual aspira o escol da raça.” (pp. 24-25).
“O tema essencial da história da formação grega é antes o conceito de arete, que remonta aos tempos mais antigos. Não temos na língua portuguesa[38] um equivalente exato para este termo, mas a palavra ‘virtude’ na acepção não atenuada pelo uso puramente moral, e como expressão do mais alto ideal cavalheiresco unido a uma conduta cortês e distinta ao heroísmo guerreiro, talvez pudesse exprimir o sentido da palavra grega. Basta isso para concluirmos onde devemos procurar a origem dela. É às concepções fundamentais da nobreza cavalheiresca que remonta a sua raiz. Na sua forma mais pura, é no conceito de arete que se concentra o ideal da educação dessa época.” (p. 25 )
            E as origens helênicas fundadas na excelência / arete estão na tradição homérica:
“O testemunho mais remoto da antiga cultura aristocrática helênica é Homero [...].” (p. 25)
“Por um lado, temos de extrair dele [Homero] a imagem que formamos do mundo aristocrático; por outro, inquirir como o ideal de Homem ganha forma nos poemas homéricos e como a sua estreita esfera de validade originária se alarga e se converte em força de formação de muito maior amplitude. A marcha da história da formação torna-se visível, antes de tudo, pela consideração do conjunto do flutuante desenvolvimento histórico da vida e do esforço artístico para eternizar as normas ideais em que o gênio criador de cada época encontra sua expressão mais alta.” (p. 26).
“Tanto em Homero como nos séculos posteriores, o conceito de arete é frequentemente usado no eu sentido mais amplo, isto é, não só para designar a excelência humana, como também a superioridade de seres não humanos: a força dos deuses ou a coragem e rapidez dos cavalos de raça. Ao contrário, o homem comum não tem arete e, se o escravo descende por acaso de uma família de alta estirpe, Zeus tira-lhe metade da arete e ele deixa de ser quem era antes. A arete é o atributo próprio da nobreza. Os gregos sempre consideraram a destreza e a força incomuns como base indiscutível de qualquer posição dominante. Senhorio e arete estavam inseparavelmente unidos. A raiz da palavre é a mesma: ἅριστος [aristos], superlativo de distinto e escolhido, que no plural era constantemente empregado para designar a nobreza.” (p. 26).
            O conceito de arete no decorrer do desenvolvimento helênico / grego foi se desdobrando a partir de seu conteúdo profundo, implícito e latente em expressões mais amplas e explícitas. Na maior parte da obra homérica a excelência / arete expressa a capacidade combativa, força e destreza, heroísmo acima de tudo, com a moral necessária e intimamente indissociável da força (Jaeger, p. 27), e tais qualidades são sempre vinculadas à noção de dever (Jaeger pp 27-29) na conservação da ordem. A consciência da responsabilidade e o respeito pela ordem, como o exercício físico que custa esforço, mas molda o corpo, vivificam sempre tais qualidades na alma, moldando esta (Jaeger, pp 29-30).  Então se chega no ponto fundamental da tradição homérica, e por consequência, da tradição greco-romana, a saber, a conjugação de qualidades espirituais, isto é, que transcendem os imperativos materiais ou biológicos, com as qualidades de ação, unidas, que eram o verdadeiro sentido da excelência / arete (Jaeger, p. 30), e que, com sua lucidez didática, Jaeger recorre ao modelo homérico de homem, Aquiles, ao citar como o exemplo perfeito um verso que prefiro reproduzi-lo aqui na a passagem inteira, em que Fênix, um mestre de Aquiles, esclarece a este certas posturas quando o herói tomado de ira fica com o discernimento enturvado:   
“Ó luminoso Aquiles, se de fato tens o retorno na mente;
se das naus velozes não queres afastar o fogo vorador, possuído de ira, como poderei quedar-me sem ti abandonado?
Peleu, domador-de-corcéis, quando, há tempo, da Ftia te mandou a Agamêmnon, enviou-me contigo;
eras muito jovem, inexperiente ainda na guerra crua e dos debates da ágora, onde os nobres formam-se.
 Por isso me mandou, para que fizesse na oratória eminente, eficiente nas obras.[39]” (Ilíada, canto IV, 434-444).
          Fênix fora escolhido para formar o luminoso Aquiles, o protegido do deus solar Apolo, tanto nas palavras como nas ações, e ao mesmo tempo sintetizava nesse momento, numa sentença que dissipava todas as dúvidas[40], o eterno modelo helênico de mente sã e corpo são para a formação do homem, e que era conhecido na Antiguidade como a formação através da ginástica e música. Tal modelo expresso em sua excelência implica que o homem também deve ser solar, capaz de doar força, calor, luz e criação, e como o próprio Sol, sem por isso sentir-se subtraído. É um modelo para uma raça de criadores de cultura e civilização! Sobre tais passagens Jaeger (p. 30) fez colocações categóricas:
“Não foi sem razão que os Gregos posteriores viram nestes versos a mais antiga formulação do ideal de formação grego, no seu esforço para abranger a totalidade do humano. Citaram-no com frequência, num período de cultura refinada e retórica, para louvar a alegria da ação dos tempos heroicos e opô-la ao presente, pobre de ações e rico de palavras.” (p. 30).
“O pensamento ético de Platão e de Aristóteles baseia-se, em muitos pontos, na ética aristocrática da Grécia arcaica. Isto exigiria uma interpretação histórica minuciosa. A filosofia sublima e universaliza os conceitos que capta na sua limitação originária, mas com isso se confirma e se define a sua verdade permanente e indestrutível idealidade.” (p. 33).
            Com as considerações acima, em que Jaeger conecta a literatura à filosofia, retomo aqui o ranking de Murray justamente nesta última, até porque são intimamente relacionadas. Na Filosofia ocidental[41] Aristóteles (384-322 a.C.) está em primeiro lugar, seguido pelo também grego Platão (cerca de 428-348 a.C.), e pelo alemão Immanuel Kant (1724-1804), enquanto o grego Sócrates (469-399 a.C.) e o greco-romano-egípcio Plotino (204-270 d.C.) ocupam as 12ª e 19ª posições respectivamente.


Notas


[15] Nota do autor: Josep Picó, Cultura y Modernidad – seducciones y desenganos de la cultura moderna, Alianza Editorial, Madrid, 1999, página 34.

[16] Nota do autor: Dicionário Houaiss, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2001, 1ª edição, vocábulo clássico.

[17] Nota do autor: Ver Oxford Latin Dictionary, Oxford Clarendon Press, Oxford, 1968. Vocábulo classicus e vocábulo classis
Também em Dictionnaire étymologique de La Langue Latine: Histoires des Mots, Klincksiek, Paris, 2001, 4ª edição, de Antoine Meillet e Alfred Ernout. Ver vocábulo classis.

[18] Nota do autor: A origem da metáfora está referenciada na obra Noites Áticas de Aulo (ou Aulio) Gélio, livro XIX,8,15.
- Oxford Latin Dictionary, Oxford Clarendon Press, Oxford, 1968. Vocábulo classicus e vocábulo classis.
- Dictionnaire étymologique de La Langue Latine: Histoires des Mots, Klincksiek, Paris, 2001, 4ª edição, de Antoine Meillet e Alfred Ernout. Ver vocábulo classis.

[19] Nota do autor: Aulo Gélio, Noites Áticas, EDUEL, Londrina, 2010. Introdução de Bruno Fregni Basseto, tradução e notas de José R. Seabra F., a partir do texto em latim fixado na Oxford Classical Texts. XIX,8,1-15.

[20] Nota do autor: Aulo Gélio, Noites Áticas, EDUEL, Londrina, 2010. Introdução de Bruno Fregni Basseto, tradução e notas de José R. Seabra F., a partir do texto em latim fixado na Oxford Classical Texts. Página 642, nota 20.

[21] Nota do autor: Werner Jaeger, Paidéia – A Formação do Homem Grego, Ed. Martins Fontes, 5ª Edição, São Paulo, 2010. Originalmente escrito em alemão, em três partes 1933-1944-1947, tradução de Artur M. Parreira. Páginas 15-16.

[22] Nota do autor: Charles Murray, Human Accomplishment – The Pursuit of Excellence in the Arts and Sciences, 800 B.C to 1950, HarperCollins, Nova Iorque, 2003. Página 122.

[23] Nota do autor: Charles H. Kahn, Pitágoras e os pitagóricos – uma breve história, Edições Loyola, São Paulo, 2007. Traduzido por Luís Carlos Borges do original Pythagoras and the Pythagoreans – A brief history, Hackett, Indianapolis, 2001. Páginas 191-212.
O ponto central da obra em questão de Kahn é que a tradição pitagórica foi absorvida e levada a frente por Platão, e muito do que se tem dos feitos pitagóricos teriam sido perdidos sem o gênio de Platão, que não só soube recolher tal legado, como ainda aprimorou, no mínimo, significante parte dos desenvolvimentos pitagóricos precedentes e contemporâneos dele. Platão inclusive absorveu e potencializou outras tradições gregas como a de Parmênides (séculos VI-V a.C.) e a de Heráclito (séculos VI-V a.C.).

[24] Nota do autor: O classicista e matemático de Cambridge Thomas Heath (1861-1940) publicou uma obra especificamente sobre Aristarco de Samos cujo título é sugestivo em tal comparação:  Aristarchus of Samos, the Ancient Copernicus, Oxford: Clarendon Press, 1913.

[25] Nota do autor: Charles Murray, Human Accomplishment – The Pursuit of Excellence in the Arts and Sciences, 800 B.C to 1950, HarperCollins, Nova Iorque, 2003. Página 123.

[26] Nota do autor: Charles Murray, Human Accomplishment – The Pursuit of Excellence in the Arts and Sciences, 800 B.C to 1950, HarperCollins, Nova Iorque, 2003. Página 127.

[27] Nota do autor: Charles H. Kahn, Pitágoras e os pitagóricos – uma breve história, Edições Loyola, São Paulo, 2007. Traduzido por Luís Carlos Borges do original Pythagoras and the Pythagoreans – A brief history, Hackett, Indianapolis, 2001. Comenta Kahn:
“No tempo de Platão, temos conhecimento de uma grande variedade de pitagóricos. O mais distinto entre eles era o amigo de Platão Arquitas de Tarento. Arquitas teve uma carreira eminente como estadista em sua cidade nativa, mas também foi um cientista e matemático notável, um fundador da tradição antiga da harmonia matemática e pioneiro da geometria sólida e da mecânica matemática. Dizem também que foi o professor do grande matemático Eudoxo.” (Página 61).
“Como um dos grandes cientistas da época, Arquitas terá representado para Platão a contribuição pitagórica para o conhecimento matemático.” (Página 62).
                Trabalhos em geometria que foram codificados sistematicamente por Euclides haviam sido feitos por Arquitas, na teoria musical ou harmonia, que é também fundamental parte da matemática, o trabalho de Arquitas estabeleceu o padrão para a tradição matemática posterior, e certas conclusões euclidianas foram reconhecidas como dependentes dos avanços de Arquitas (página 63). Outros desenvolvimentos de Arquitas foram na mecânica, ótica e acústica (página 65).
“Com Euclides, a geometria havia alcançado sua forma clássica, na qual perdeu quaisquer características distintamente pitagóricas que pudesse ter tido. [...] Para a aritmética, por outro lado, o texto escolar padrão é de um pitagórico confesso, Nicômaco de Gerasa.” (Página 191).
[28] Nota do autor: Charles Murray, Human Accomplishment – The Pursuit of Excellence in the Arts and Sciences, 800 B.C to 1950, HarperCollins, Nova Iorque, 2003. Página 128.

[29] Nota do autor: Charles Murray, Human Accomplishment – The Pursuit of Excellence in the Arts and Sciences, 800 B.C to 1950, HarperCollins, Nova Iorque, 2003. Página 129.

[30] Nota do autor: Charles Murray, Human Accomplishment – The Pursuit of Excellence in the Arts and Sciences, 800 B.C to 1950, HarperCollins, Nova Iorque, 2003. Página 130.

[31] Nota do autor: Charles H. Kahn, Pitágoras e os pitagóricos – uma breve história, Edições Loyola, São Paulo, 2007. Traduzido por Luís Carlos Borges do original Pythagoras and the Pythagoreans – A brief history, Hackett, Indianapolis, 2001. Página 195.

[32] Nota do autor: Charles Murray, Human Accomplishment – The Pursuit of Excellence in the Arts and Sciences, 800 B.C to 1950, HarperCollins, Nova Iorque, 2003. Página 137.

[33] Nota do autor: Charles Murray, Human Accomplishment – The Pursuit of Excellence in the Arts and Sciences, 800 B.C to 1950, HarperCollins, Nova Iorque, 2003. Página 142.

[34] Nota do autor: Ver Antonio Ruiz de Elvira, Mitología Clásica, Editorial Gredos, Madrid, 1982 (segunda edição corriginda), páginas 112-113 e 261-265.

[35] Nota do autor: Ver Antonio Ruiz de Elvira, Mitología Clásica, Editorial Gredos, Madrid, 1982 (segunda edição corriginda), páginas 112-113 e 261-265.

[36] Nota do autor: Andrew Robert Burn, The Penguin Histoy of Greece, Penguin Books, Londres, 1990, páginas 30-34.

[37] Nota do autor: Werner Jaeger, Paidéia – A Formação do Homem Grego, Ed. Martins Fontes, 5ª Edição, São Paulo, 2010. Originalmente escrito em alemão, em três partes 1933-1944-1947, tradução de Artur M. Parreira. Ver particularmente os capítulos: introdução; lugar dos Gregos na história da educação, Nobreza e arete; Cultura e educação na nobreza homérica; Homero como educador.  

[38] Nota do autor: Na edição inglesa o tradutor, Gilbert Highet, coloca, por sua vez que não existe um equivalente completo para arete em inglês. Ver Werner Jaeger, Paideia: the Ideals of Greek Culture – volume 1, Editora Oxford, Londres, 1946, 3ª edição em inglês, página 5.
Na edição alemã Jaeger afirma que a palavra alemã tugende, de uso medieval, conserva um sentido correspondente ao de arete, tendo uma conotação cavalheiresca de ímpeto conquistador, combinando maneiras corteses e heroísmo marcial. Ver Werner Jaeger, PAIDEIA – Die formung des Griechischen Menschen, Editora Walter de Gruyter, Berlim, 1973. (Google books), página 25.

[39] Nota do autor: Homero, Ilíada (2 volumes), Editora ARX, São Paulo, 4ª edição 2003, 4ª reimpressão 2004, tradução do grego por Haroldo de Campos, introdução e organização por Trajano Vieira.

[40] Nota do autor: É nítido o comum tema ariano da casta guerreira aqui, uma vez que tanto na literatura de formação dos guerreiros hindus, especialmente no Bhagavad-gītā, como na literatura da aristocracia guerreira grega, especialmente a Ilíada de Homero, um grande mestre dissipa as dúvidas que causam hesitação no herói. Na Grécia é Fênix quem exorta o herói Aquiles, e na Índia é o divino Kṛṣṇa quem exorta o herói Arjuna. No terceiro capítulo do Bhagavad-gītā tal dicotomia entre ação e saber / palavras é exposta também, mas em forma dialogada. Arjuna questiona Kṛṣṇa sobre ela:
3.1 “Ó Janārdana, se consideras que o conhecimento superior é melhor do que a acção, então porque é que queres que eu assuma esta tremenda guerra?” 
3.3 “Ó sem pecado, Eu estabeleci neste mundo e no passado um duplo caminho; o do jñāna-yoga para os pensadores e o karma-yoga para os laboriosos.” 
3.18 “Portanto, cumpre sempre o teu dever com eficácia e desapegado dos resultados [das ações]; pois agindo assim sem apego atinge-se a Divindade.” 
3.30 “Cumpre o teu dever oferecendo todas as ações à Mim num contexto mental e espiritual, livre do desejo, do apego e da ganância.”
Bhagavad-gītā – A Canção do Senhor, Editora Ésquilo, Lisboa, 2010. Tradução do sânscrito para o português por José Carlos Calazans.

[41] Nota do autor: Charles Murray, Human Accomplishment – The Pursuit of Excellence in the Arts and Sciences, 800 B.C to 1950, HarperCollins, Nova Iorque, 2003. Página 133.




Sobre o autor: Mykel Alexander possui Licenciatura em História (Unimes, 2018), Licenciatura em Filosofia (Unimes, 2019) e Bacharel em Farmácia (Unisantos, 2000).


O que é realmente “cultura”? - parte 1 - Por Mykel Alexander

O que é realmente “cultura”? - parte 2 - Por Mykel Alexander

O que é realmente “cultura”? - parte 3 - Por Mykel Alexander


domingo, 4 de agosto de 2019

O que é realmente “cultura”? - parte 3 - Por Mykel Alexander


Mykel Alexander


O imaginário ocidental contemporâneo do que é cultura tem suas origens com o surgimento dos centros urbanos denominados de burgos

Antes de examinar o conceito original da palavra cultura será esclarecida a concepção de cultura que prevaleceu no século XX, pois é a que ainda ressoa na mentalidade atual das pessoas independentemente da idade que tenham. A definição ‘c’ para a palavra cultura extraída do dicionário Houaiss, “O cabedal de conhecimentos, a ilustração, o saber de uma pessoa ou grupo social.”, se apresentada a um indivíduo, qualquer que seja sua idade, será certamente admitida como verdadeira a não ser que ele não tenha a mínima instrução básica, uma vez que por mais precária que possa ser a condição atual do sistema educacional, por exemplo no Brasil, é de comum acordo que os professores e alunos admitem que a leitura e o estudo tendem a melhorar o “o saber de uma pessoa ou grupo social,” enquanto que as pessoas que hoje ultrapassaram os 50 anos de idade testemunharam a época em que as residências, especialmente nas estantes da sala de estar, tinham coleções de livros ou enciclopédias, estas sempre à venda inclusive nas bancas de jornais, e muito estimada era especialmente a denominada Enciclopédia Barsa, que feita com material de muita qualidade era um produto mais caro.

Essa maneira de definir a cultura, é a que se denomina de burguesa, isto é, o modo que o indivíduo burguês entende o que é cultura, e tem suas origens durante o período denominado de Renascimento, o qual sucedeu à Idade Média, a partir do século XV. Mas antes de examinarmos essa visão burguesa de cultura, devemos primeiro entender o que significa realmente o burguês. Explica Gian Mario Bravo, Decano da Faculdade de Ciências Políticas de Turim:
“Originariamente o termo Burguesia, cuja raiz se encontra no vocábulo latino medieval burgensis, caracteriza os habitantes do burgo, da cidade. Temos, assim, derivações nas diferentes línguas: Bürger na Alemanha e posteriormente, bourgeois na França, que se tornará apelido de uso comum após a Revolução Francesa. Na passagem da Idade Média para a Idade Moderna, o habitante da cidade adquire uma sua configuração típica de classe: afirma-se como artesão, como comerciante, como pequeno e médio proprietário rural ou imobiliário, como representante da lei e, enfim, como ‘capitalista’.[9]
Henri Pirenne (1862-1935), o grande historiador medievalista belga, da Universidade de Gante, explica, por sua vez, a origem dos próprios burgos dentro do contexto do século IX d.C. duma Europa predominantemente rural e empesteada de saques e desordem:
“A primeira necessidade à qual era preciso fazer face era a da defesa, quer contra os Sarracenos e Normandos, quer contra os príncipes vizinhos. Deste modo, vemos, a partir do século IX, todo o território cobrir-se de fortalezas. Os textos contemporâneos dão-lhe os mais diversos nomes: castellum, castrum, oppidum, urbs, municipium; a mais usual, e em todo o caso a mais técnica destas designações, é a de burgus, palavra adoptada dos Germanos pelo latim do Baixo Império e que se conservou em todas as línguas modernas (burg, borough, bourg, borgo).[10]
As palavras burguês e burguesia, portanto, originalmente significavam o habitante ou classe de habitantes dos núcleos urbanos, fossem pequenas ou grandes cidades, que em geral tinham inicialmente sido fortalezas, aglutinando gradualmente pessoas que exerciam atividades variadas produtivas e comerciais, em contraposição aos vilarejos e aldeias rurais que possuíam sua própria dinâmica de vida peculiar. Esta dualidade é praticamente ignorada totalmente na atualidade, mas o modo de pensar do habitante do campo, particularmente em vilarejos e aldeias, o que significava a maior parte da população europeia até o período do Renascimento, ou seja, na passagem da Idade Média para a Idade Moderna nos séculos XV e XVI, possui muitas diferenças do modo de pensar do habitante das cidades que passa a ser um contingente da população europeia cada vez maior a partir do fim do período medieval. A Sociologia dos séculos XIX e XX produziu muitos estudos[11] mostrando as diferenças do homem do campo em relação ao homem da cidade ou burguês, e bastando para nossa temática, se pode citar três diferenças básicas, enumeradas abaixo:

1) Quanto às leis e ritmos da natureza, o homem do campo está mais próximo que o homem da cidade, o burguês. Em termos de negócios, por exemplo, o homem do campo dependia direta e totalmente em quase todas áreas de trabalho dos ciclos das estações do ano, enquanto que o homem da cidade dependia disso indiretamente e não em todas áreas do trabalho.

2) Concernindo às relações sociais, o homem da cidade, o burguês, lida com maior quantidade e maior variedade de tipos de pessoas que muitas vezes até procedem de regiões diferentes, distantes ou próximas, resultando em pouca intimidade nas relações da vida cotidiana, enquanto o homem do campo se relacionava com uma comunidade mais fixa e que pouco mudava através dos séculos, e em população bem menor, resultando em maior intimidade nas relações da vida cotidiana. Utilizando dois vocábulos alemães, decorrente dos avanços dos estudos da sociologia alemã do século XIX, especialmente a partir da obra do grande sociólogo alemão Ferdinand Tönnies (1855-1936), de modo muito simplificado pode-se estipular que o homem da cidade tende ao tipo de vida social fixado por contrato social e coerção jurídica, denominada de Gesellschaft, enquanto o homem do campo, ou dos núcleos urbanos de pequeno porte, vilas e aldeias, tende ao tipo de vida social por vínculo de afinidades e de usos e costumes, denominada de Gemeinschaft. Nestes dois termos alemães estão representados os dois principais modos de ser da humanidade, especialmente no Ocidente, os quais serão melhor explicados mais adiante, mas a importância destes dois termos é tanta que implica no ‘contrato social’, isto é, a Gesellschaft, vincular-se necessariamente tanto ao liberalismo quanto ao socialismo marxista de luta de classes, enquanto a Gemeinschaft, a ‘comunidade por vínculos e afinidades’ implica necessariamente vincular-se ao nacionalismo ou nacional-socialismo, isto fazendo uso das terminologias contemporâneas.

3) A combinação dos dois fatores acima resulta que a vida na cidade expõe o homem a uma pressão maior de mudanças, enquanto a vida no campo conserva maior estabilidade.

A sociedade na Europa, a partir do fim da Idade Média e início da Idade Moderna passará no decorrer do aumento de sua população a formação de dois tipos de mentalidade conforme as dualidades acima delineadas, a do homem do campo e a do homem da cidade que era denominado de burguês. Contudo, a definição ‘c’ para a palavra cultura extraída do dicionário Houaiss, “O cabedal de conhecimentos, a ilustração, o saber de uma pessoa ou grupo social.”, que consolidou-se no imaginário ocidental do século XX será um desenvolvimento, de modo geral, procedente da mentalidade do homem da cidade, isto é, do burguês.


A mentalidade medieval precedeu a mentalidade burguesa

A Idade Média do Ocidente foi uma época que, de modo simplificado, surgiu do fim do Império Romano no século VI d.C. e perdurou até o século XV d.C. somando um período de quase 1000 anos, o qual mesclava:

 1) Costumes semitas através da religião cristã, e irradiados da Igreja Católica e suas variações monásticas para os núcleos urbanos e também para os vilarejos e aldeias. Pode-se considerar como primeira força da Idade Média. É importante registrar que na Igreja Católica, em núcleos mais estudiosos, adentrou pequena parte da filosofia de Platão (cerca de 428-348 a.C.), de Aristóteles (384-322 a.C.) e de Plotino (204-270 d.C.), entre outros, e em grande medida em fontes indiretas de comentadores pagãos e cristãos, formando um acervo que foi ferramenta para estudos filosóficos e religiosos nestes núcleos eruditos.

 2) Costumes latinos que possuíam misturas de costumes de diversos povos asiáticos e do norte da África, decorrentes da herança do Império Romano, procedentes em parte da Igreja Católica e em parte da fração da população não-cristã, presentes, de modo geral, na parte mediterrânea da Europa. Todavia, certos costumes foram fundidos nas práticas e liturgias católicas através de uma reinterpretação cristã, tendo esta mais força nos centros urbanos e perdendo sua prevalência conforme se afastava destes e alcançava os vilarejos e aldeias longínquas no campo ou fronteiriças com as florestas denominadas de pagus, onde viviam os pagãos[12], isto é, os não cristãos, enquanto, por outro lado, outros costumes, o dos pagãos, conservaram de modo predominante a interpretação de outras religiões não-cristãs, com teor original ou alterado, mas num sentido de prevalência oposta, sendo mais relevante nos pagus, isto é, nos vilarejos e aldeias longínquas no campo ou fronteiriças com as florestas, e perdendo influência conforme aproximavam-se as pequenas cidades e demais centros urbanos. É importante registrar que nos costumes latinos penetrou alguma influência da filosofia greco-romana de teor de bons costumes, isto é, moral, ao menos em nível superficial. Pode-se considerar como a terceira força da Idade Média, entrando em dissolução devido ao advento do cristianismo, ao influxo dos costumes germânicos, e ao desgaste do tempo.

 3) Costumes indo-europeus dos chamados povos bárbaros, especialmente os germânicos, os quais também eram pagãos. Tais costumes eram mais fortes nas regiões de populações germânicas e se tornavam menos presentes conforme se adentrava em outras regiões com menor população germânica, mantendo com a Igreja uma relação de influência mútua. Um dos principais costumes indo-europeus em questão era o denominado de fides, que é o da mútua confiança entre as pessoas decorrente da força que possuíam em manterem suas palavras e promessas. Neste contexto, conforme prevaleciam os costumes indo-europeus, ia se formando no decorrer do tempo uma espécie de movimento político denominado de gibelino, que prevalecia nos segmentos políticos da sociedade, enquanto por outro lado, conforme prevaleciam os costumes da Igreja Católica, formava-se um movimento religioso-político denominado de guelfo, centrado nas autoridades papais. Ambos movimentos representavam as forças da sociedade e da Igreja com seus respectivos interesses, com pontos concordantes e divergentes. Pode-se considerar como a segunda força da Idade Média, mantendo disputa com os valores semitas do cristianismo.

A instituição central da Europa medieval era a Igreja Católica, que continha em si os três itens acima numa proporção que variava de região para região, todavia submetidos a dois conceitos fundamentais do cristianismo: a tradição semita baseada na Bíblia e a cristologia, isto é, o estudo da natureza de Cristo e de como essa alegadamente regeria a humanidade para seu melhor destino.

Se admitida a constatação que com o advento do cristianismo, em todas suas expressões, desde as ordens monásticas isoladas da vida mundana até as instituições que influíam fortemente na política e que somadas formavam a Igreja Católica, passou-se a ter os escritos bíblicos como a fonte mais autorizada no Ocidente durante a Idade Média, e que partindo das premissas contidas na Bíblia, tanto do Antigo Testamento como do Novo Testamento, a verdade e o bem estavam presentes somente entre as comunidades que a Bíblia afirmava terem aliança com Deus, esta alegadamente iniciada na Primeira Aliança da humanidade com Deus, através do personagem bíblico Abraão, dando origem ao povo judeu, depois de supostos séculos este povo através de seu então líder Moisés renovaram a aliança com Deus sob novos termos, e após um longo período, alegadamente superior a mais de mil anos, uma nova aliança entre Deus e a humanidade foi feita, outra vez em novos termos, intermediada por Jesus Cristo, pode-se ter como fato que as disputas no período medieval que concerniam a interpretação histórica da humanidade recorriam sempre aos escritos bíblicos para obterem o veredito final, sendo que a margem para tais disputas estava situada apenas dentro de interpretações que não feriam as bases de como as escrituras bíblicas viam Deus, o Universo, o mundo, o homem, os animais, impérios e reinos,  pode-se conceder que as fontes de conhecimento que provinham de impérios e reinos que não compartilhavam das concepções bíblicas dificilmente tinham difusão entre os povos cristãos ocidentais que estavam sob influência da Igreja Católica. 

Os únicos três povos que mantinham intercambio de conceitos com a Igreja Católica eram os judeus, os islâmicos e os cristãos de outras igrejas cristãs, como a Bizantina, isto é a ortodoxa, ou igreja copta, além de ramificações cristãs menos relevantes, desde igrejas menores até monastérios remotos. Esse intercâmbio de conceitos era possível pelo fato que tanto a Igreja Católica, como as variadas correntes judaicas, islâmicas e cristãs não católicas admitiam um passado comum baseado na alegada primeira aliança de Deus com a humanidade, intermediada supostamente por Abraão. Não obstante essa base comum, cada grupo acima reivindicava possuir a mais legítima interpretação dessa aliança, inclusive os islâmicos afirmavam ser os possuidores da mais atual aliança entre Deus e a humanidade, intermediada por Maomé, e que as alianças anteriores tinham deteriorado e, portanto, tinham caducado.

A população da Europa em sua maior parte era composta por camponeses[13], cerca de 90 por cento, enquanto a parte restante vivia nos centros urbanos, e ambas partes sob a influência dos três componentes acima enumerados, 1) costumes semitas, 2) costumes latinos com as mencionadas misturas, 3) costumes indo-europeus germânicos, conforme a área de influência destes acima descritas. Se termos em consideração a definição ‘c’ para a palavra cultura extraída do dicionário Houaiss, “O cabedal de conhecimentos, a ilustração, o saber de uma pessoa ou grupo social.”, que consolidou-se no imaginário ocidental do século XX, a cultura na Idade Média era muito polarizada, uma vez que, por um lado, a esmagadora parte da população era analfabeta[14], enquanto, por outro lado, uma minoria ínfima da população, mantinha-se em plena forma intelectual nas disputas e polêmicas, centradas na infalibilidade das escrituras bíblicas bem como das formulações das autoridades religiosas, que se sucediam através dos séculos medievais, especialmente na disciplina de Lógica, isto é, a coerência racional, mas também na disciplina de Metafísica, ou seja, a das constatações mais próximas das verdades absolutas universais.

Em resumo, a mentalidade da esmagadora maioria da população europeia era a soma de antigos costumes que eram sobrepostos a costumes mais antigos ainda procedentes dos costumes semitas, costumes latinos, costumes indo-europeus, cujos significados originais iam sendo esquecidos através de séculos e séculos de vivência mais automatizada que consciente, enquanto apenas uma minoria de cerca de 1 por cento da população se ocupava de investigar com profundidade a realidade do Universo, de Deus, do homem e da vida. Todo o contexto geral medieval avançou lentamente através de um período de quase 1000 anos durante a Idade Média até o século XV d.C., quando cinco marcos históricos radicalmente importantes transformam o lento ritmo de mudanças da vida medieval numa marcha de aceleração quase ininterrupta.

Destacadamente se pode enumerar dois marcos de total impacto geopolítico:

1) A colonização das Américas como parte da expansão europeia através dos avanços nas navegações. As três principais forças aqui eram os reinos europeus, a Igreja Católica e o judaísmo internacional, cuja equação de forças variava de região para região na Europa.

2) A invasão dos turcos otomanos no leste da Europa, resultando na aniquilação do Império Bizantino no oriente da Europa.

E mais três marcos de total impacto na mentalidade europeia.

3) Ressurgimento da tradição greco-romana, particularmente sua filosofia e sua ciência.

4) Avanço de concepções judaicas através da Reforma Protestante, que foi a origem das atuais igrejas evangélicas.

5) Advento da máquina de imprensa pelo alemão Johannes Gutenberg (1400-1468).

Com estes cinco marcos, estavam reunidos cinco dos seis ingredientes para formar o explosivo século XX, sendo que o sexto ingrediente será mencionado no devido momento.




Notas


[9] Nota do autor: Gian Mario Bravo, Dicionário de Política (Organizado por Norberto Bobbio, Nicola Matteucci, Gianfranco Pasquino), 2 volumes, 11ª edição, UnB, Brasília, 1998.  Tradução do italiano Dizionario di política, UTET, 1983, ao português por Carmen C. Varriale, Gaetano Lo Mônaco, João Ferreira, Luíz Guerreiro Pinto Cacais e Renzo Dini. Ver vocábulo burguesia.

[10] Nota do autor: Henri Pirenne, As cidades da Idade Média, Publicações Europa-América, Mira Sintra, 1977. Traduzido do original em francês Les Villes du Moyen Âge, por Carlos Montenegro Miguel. Páginas 60-61.

[11] Nota do autor: Georges Vacher de Lapouge (1854-1936) talvez tenha sido o de maior destaque até a primeira metade do século XX na produção desta temática de diferenciação rural e urbana. Um ponto muito relevante é o da perda de natalidade do melhor do campesinato, quando os mais bem-dotados habitantes do meio rural ao emigrarem do campo para a cidade, se submetem a uma voluntária restrição de reprodução, assumida pelo bem da promoção social e conquistas no meio competitivo. Outro fator também deletério à genética saudável procedente do ambiente rural marcante refere-se ao envolvimento com práticas viciantes e produtos tóxicos, alimentícios, industriais ou de abuso, os quais são mais disseminados, em regra, nas cidades grandes que no campo. Ver Pitirim Sorokin, Contemporary sociological theories, Harper & Brothers, Nova Iorque, 1928. Página 242.
Também pode-se apreciar a dinâmica da formação dos centros urbanos na Idade Média a partir da sociedade europeia predominantemente rural em Henri Pirenne, As cidades da Idade Média, Publicações Europa-América, Mira Sintra, 1977. Traduzido do original em francês Les Villes du Moyen Âge, por Carlos Montenegro Miguel.


[12] Nota do autor: Conforme o dicionário o Houaiss a palavra pagão no século XIII era “o que ou aquele que não foi batizado”, “adepto de qualquer religião que não adota o batismo ou adota o politeísmo.” Mas a origem etimológica da palavra pagão procede da palavra latina pagānus, já na Antiguidade, que significa “homem da aldeia, aldeão, cidadão que não é soldado, paisano, pagão, gentio.’ Ver vocábulo pagão.
No Oxford Latin Dictionary (Editora Oxford, Oxford, 1968) pāgānus refere-se ao habitante de um pagus, isto é, comunidade ou distrito do interior, sendo um camponês ou habitante do interior, também o civil em oposto ao soldado, bem como o ‘povo local’. Ver vocábulos pāgānus e pagus,
No Dictionnaire étymologique de La Langue Latine: Histoires des Mots, Klincksiek, Paris, 2001, 4ª edição, de Antoine Meillet e Alfred Ernout é registrada uma observação importante para compreender a evolução do termo pāgānus, pois esta palavra antes de ter significação religiosa, tinha adquirido uma significação política-civil como contraparte de castrēnsis, palavra com relação à atividade ou acampamento militar. Ver vocábulo pāgus.

[13] Nota do autor: De modo geral, na Antiguidade, apesar dos grandes núcleos urbanos, cidades e capitais de impérios, a população rural era a predominante, sendo que a inversão de predominância da população urbana sobre a rural é um fenômeno dos últimos duzentos anos (ver Patterns of urban and rural population growth (Departmente of International Economic and Social Affairs, POPULATION STUDIES, nº 68), United Nations Publication, Nova Iorque, 1980. Página 1.
Os estudos mais atuais ainda mantêm a estimativa de 90% da população medieval europeia. Ver Maryanne Kowaleski, Medieval People in Town and Country: New Perspectives from Demography and Bioarchaeology, Speculum, Vol. 89, Nº. 3 (julho 2014), página 573.

[14] Nota do autor: Após a queda do Império Romano a alfabetização na Europa ocidental, latina e cristã, foi quase totalmente aniquilada. “A alfabetização leiga tinha quase desaparecido com o fim da Antiguidade, e em geral somente o clero e membros das famílias governantes era capazes de ler.” Ver  L. D. Reynolds & N. G. Wilson, Scribes & Scholars – A Guide to the Transmission of Greek & Latin Literature, Oxford Clarendon Press, Oxford, 4ª edição, 2013. Página 112. 



Sobre o autor: Mykel Alexander possui Licenciatura em História (Unimes, 2018), Licenciatura em Filosofia (Unimes, 2019) e Bacharel em Farmácia (Unisantos, 2000).


O que é realmente “cultura”? - parte 1 - Por Mykel Alexander

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