terça-feira, 25 de dezembro de 2018

Cristianismo – uma ruptura total ou parcial com o judaísmo? - Parte 1 - Por Mykel Alexander

  

Mykel Alexander
Religião e geopolítica no Ocidente contemporâneo

Num artigo publicado no The Occidental Observer (07/01/2017) sobre o livro de Rusell Gmirkin, Berossus and Genesis, Manetho and Exodus: Hellenistic Histories and the Date of the Pentateuch, levantou-se o tema sobre consistentes contradições do Antigo Testamento, o que significaria inclusive registros de pretensões históricas legítimas por parte dos compositores do Antigo Testamento  e de seus seguidores atuais sem, contudo, possuírem tal legitimidade a corroboração nos estudos históricos e arqueológicos.

            Dentro das polêmicas atuais sobre o cristianismo, acentuadas pelas polêmicas políticas, a relação entre religião e política passou a ficar mais viva. Dos três grandes grupos cristãos, os dos católicos, ortodoxos e evangélicos, no Ocidente tem mais relevância as divergências entre católicos e evangélicos, já que os ortodoxos se situam mais no leste da Europa, Rússia e partes da Ásia e Egito, locais de menos contato com o Ocidente.

Um novo fator tem entrado nas querelas cristãs, a saber, a corrente de fiéis cristãos sionistas que apoiam o Estado judaico de Israel devido a associarem tal Estado às profecias bíblicas. Entre os brasileiros talvez o principal nome vinculado a esta nova corrente seja o publicista Olavo de Carvalho. É inegável que a soma de fatores recentes, como o fortalecimento da direita liberal e o cristianismo sionista, deu impulso nas eleições brasileiras de 2018 nas quais alguns importantes vencedores estreitam relações com Israel. Na realidade esse padrão tem sido recorrente nos governos recém-eleitos de direita, como nos EUA, na Áustria e na Itália. É uma geopolítica que gravita ao redor de Israel.

           Mas de onde é retirado o critério de voto dos eleitores dessa direita pró-Israel?  Muitos votos que foram para essa nova direita procederam das correntes cristãs, católicas, evangélicas e sionistas, e são conquistas políticas originadas de expectativas não só políticas, mas em grande parte religiosas. Para quem não é completamente leigo sobre pontos básicos do cristianismo, sabe que a Bíblia possui uma divisão fundamental, entre o Antigo Testamento com escrituras exclusivamente dos israelitas e dos judeus, as quais antecedem Jesus, e o Novo Testamento que traz conteúdo atribuído aos ensinamentos de Jesus, embora muitos dos quais escritos e difundidos por judeus, começando pelos apóstolos Paulo e Pedro, dois dos mais importantes nomes para a formação da Igreja Católica, que, repito, eram judeus e com inseparáveis laços afetivo à tradição judaica .

            De modo muito simples a Bíblia em seu conteúdo apresenta um suposto acordo de um personagem, Abraão, com o deus, narrado no livro bíblico Gênesis do Antigo Testamento. Este acordo é a chamada Aliança (exatamente em Genesis 15, 18) que teria ocorrido entre o deus do Antigo Testamento, Iahweh, e Abraão o qual a partir de então seria o ancestral patriarca do povo judeu[1], e aceito como ancestral comum das tradições cristãs e islâmicas, daí o nome de religiões abraâmicas para o judaísmo, cristianismo e islamismo. Para os cristãos em João 13,34 e no decorrer do livro Epístolas aos hebreus, a Aliança do Antigo Testamento, que tinha sido iniciada com Abraão e reforçada com Moisés, é substituída pela Nova Aliança mediada entre Deus e os homens através de Jesus Cristo. Para os islâmicos as alianças anteriores entre Deus e os homens, mediadas por Abraão, Moisés e Jesus Cristo, foram, decido ao desgaste ou deturpações, perdendo o sentido legítimo através do tempo, e teria sido através de Maomé que os ensinamentos de Deus foram retificados em seu sentido original no Alcorão.

            Também, quem não é totalmente leigo sobre a tradição cristã sabe que as igrejas evangélicas preconizam o Antigo Testamento sobre o Novo Testamento enquanto que a Igreja Católica preconiza o Novo Testamento sobre o Antigo Testamento. Claro que essa posição adotada pelos evangélicos os fazem muito mais próximos aos judeus do que faz a posição dos católicos. E, de modo simples, dentro das polêmicas que conjugam religião e política encontram-se no Ocidente os católicos como os cristãos mais críticos ao Estado de Israel ou até mesmo judaísmo internacional (isto é, da coesão judaica incondicional apesar da condição de diáspora que permite aos judeus viverem em culturas diferentes). Na verdade, é comum os católicos, e também os ortodoxos, falarem que Jesus é o rompimento com o judaísmo. Mas será mesmo que é?

            Como é muito nebulosa a reconstrução dos primórdios do cristianismo, pularei aqui o que teria exortado ou não Jesus antes de surgirem supostas alterações em sua mensagem original, pois no decorrer dos séculos muitas disputas doutrinárias e muitos ajustes, compilações e exclusões de textos ocorreram, e isso é uma marca patente dos concílios, onde e quando se formalizavam e oficializavam as doutrinas e escrituras, e, portanto, não me precipitarei em afirmar ou negar que alguma passagem é de Jesus ou que seja fidedignamente desenvolvida sobre ensinamentos de Jesus, e irei direto a uma passagem que escolhi como ponto de partida para dar início  à reflexão se o cristianismo, como instituição religiosa que desenvolveu-se na forma de igrejas, é uma ruptura com o judaísmo como alguns cristãos afirmam.


A alegação de que a ‘salvação vem dos judeus’

Para fins de referência utilizei a versão em português da Bíblia de Jerusalém, que é considerada uma das mais sérias versões devido ao rigor das traduções e do contexto histórico feito por conjunto um conjunto multidisciplinar, que incluiu teólogos, historiadores, arqueólogos entre outros especialistas. Cada livro da Bíblia de Jerusalém contou com um especialista fazendo um texto introdutório, de contexto teológico, documental e histórico[2]. Então para as passagens analisadas aqui dei o crédito da autoria ao estudioso responsável pelo livro bíblico em questão conforme o índice de ‘Principais colaboradores’. Um ponto fundamental que a Bíblia de Jerusalém traz é que enquanto muitas versões em português da Bíblia usam a palavra ‘Senhor’ para Deus no Antigo Testamento, esta versão bíblica utiliza o termo original Iahweh. Isto pode parecer inicialmente irrelevante, mas tem significado profundo, uma vez que existe a polêmica de que o Deus do Antigo Testamento é um e o Deus do Novo Testamento, o que Jesus se refere, seria outro. Isso por si só já bastaria para afirmar um tipo de ruptura entre o Antigo e o Novo Testamento conforme será, em certa medida, também examinado aqui.

No Evangelho segundo São João, 4, 22, temos uma passagem que levanta questões muito importantes no que toca continuação ou ruptura entre o judaísmo e o cristianismo. Nela afirma-se o seguinte:

Vós adorais o que não conheceis;  

Nós adoramos o que conhecemos,  

Porque a salvação vem dos judeus

            O que se pode deduzir dessa passagem? Talvez num primeiro momento pode-se deduzir que apenas procedendo dos judeus, e de nenhum outro grupo ou povo, o bom caminho é obtido. Vamos então apurar um pouco mais o contexto.

            É comum, como uma resposta pronta, ouvir da boca dos cristãos que minimamente estudam a Bíblia alegarem que interpretar essa passagem de João como uma apologia aos judeus, seria descontextualizar tal passagem, já que esta refere-se a estadia de Jesus na Samaria onde teria conversado com uma mulher, e que, portanto, essa passagem não seria algo generalizante, mas sim restrito ao específico contexto da pequena comunidade da Samaria.

Todavia, segundo Donatien Mollat, talvez o maior especialista francês em escrituras joaninas, essa passagem tem um simbolismo, mas que no meu entender envolve depreciação de outras tradições sim. Em João 4, 18, Jesus adverte que a samaritana em questão tinha tido 5 maridos, e o tom é de reprovação, mas não exatamente por promiscuidade ou instabilidade conjugal. Explica Mollat et al.:
“Os cinco maridos simbolizam os deuses importados por cinco povoamentos pagãos [...]. O deus dos cananeus chamava-se Baal, mas esta palavra tornou-se o nome comum para designar todos falsos deuses. Ora, nas línguas semíticas, a palavra baal significa também ‘marido’, teríamos portanto aqui, um jogo de palavras não traduzido em grego, que seria retomado de Oséias 2,18-19, texto que anuncia a conversão da Samaria.” (Mollat et al., p.1851, nota b).
            É totalmente compreensível que os fiéis não tenham obrigação de conhecerem esse contexto que reúne ao simultaneamente erudição e sensibilidade para interpretação simbólica. A moça samaritana desta passagem representa, na interpretação alegórica acima, a própria história da Samaria. É uma interpretação mais profunda, que passa geralmente despercebida em relação a interpretação comum desta passagem, a saber, Jesus, alegadamente judeu, não possui repulsa à uma habitante da Samaria como era comum os demais judeus terem.

Trata-se do proselitismo de conversão geral em que visa simultaneamente converter os povos, no caso, da Samaria, apagando, consequentemente, cinco tradições pagãs. Em Oséias, livro do Antigo Testamento, o oráculo judaico de Jeová (Yahweh) é quem está contra Baal, e o povo da Samaria teria de não mais adorar Baal, mas sim Jeová, o deus judeu.

Então, vamos fazer a seguinte suposição, para vermos se há algum grau de ruptura ou de continuidade entre judaísmo e cristianismo no seguinte exemplo: se quando diante do Antigo Testamento o cristão samário tem de escolher entre Jeová (Yahweh), deus judeu do Antigo Testamento, ou Baal; o cristão grego entre Jeová (Yahweh) ou Zeus; entre Jeová ou Osíris; o cristão romano ou entre Jeová (Yahweh) ou Júpiter, todos eles escolhem sempre Jeová (Yahweh), como pode isso não ser uma conexão com o judaísmo? Há ao mesmo tempo uma deleção da identidade nacional ancestral dos respectivos povos nessa situação, uma vez que religião e a ordem social destes povos sempre foram interconectadas, e o passado destes, de tempos ancestrais, passa a ser substituído pela visão de mundo ancestral que há na narrativa do Antigo Testamento. Assim o gentil ao ser convertido, paulatinamente vai sendo desenraizado totalmente de suas tradições arcaicas. Junto com a nova religião concomitantemente dissolve-se os vínculos ancestrais já que estes são inseparáveis das religiões nas tradições dos povos. Deste modo ser cristão implica perder teor da tradição gentílica e receber teor da tradição judaica.

Pode-se afirmar que o cristão admite, sem dificuldades, que as escrituras judaicas colocaram que todos outros povos tinham falsos deuses na antiguidade, antes do advento de Jesus, e que na antiguidade o verdadeiro deus era o dos judeus e não o de quaisquer outros povos, e que o cristianismo adotou totalmente este contexto. Para os cristãos o que os judeus colocaram sobre os outros povos no Antigo Testamento é a palavra final.

É nítido que a narrativa do Antigo Testamento, em que os deuses dos demais povos que não o povo judeu são deuses falsos, retomada em João é uma nova carga contra as tradições não-abraâmicas, porém desta vez com o cristianismo se valendo exatamente das mesmas premissas judaicas. Pode-se dizer que tal postura cristã não é uma herança do judaísmo? As reprovações dos cristãos à idolatria significam isso, tais reprovações possuem antecedentes nas reprovações dos judeus à idolatria dos outros povos, conforme segue abaixo.

Na tradição grega a palavra daimôn é relacionada com seres sobrenaturais ou sobre-humanas, que não são necessariamente benéficos ou maléficos aos homens, existindo tipos de daimôn de ambas naturezas. Por exemplo, Sócrates teriam um daimôn conselheiro guiando sua busca pela sabedoria (ver Apologia de Sócrates de Platão) e Júlio César também teria um daimôn que lhe acompanhava nos desafios em vida e foi-lhe fiel após a morte em limpar-lhe a honra diante de seus assassinos (Plutarco, Vida de César, 69.2).

Na Septuaginta, a versão da Bíblia hebraica traduzida para o grego entre os séculos III a.C. e o século I a.C., os tradutores judeus substituíram vários termos gregos relacionados com a palavra daimôn na palavra plural daimonia. Christopher P. Jones, da Universidade de Harvard, observa:
“A cristandade também tomou do judaísmo uma concepção de inumeráveis poderes do mal, frequentemente identificado com os deuses das nações ‘aos arredores,’ [...]” (Jones, p. 36).
Em Salmos 96.5 se diz,  “Todos os deuses das nações são demônios” (daimonia)[3] e, explica Jones, esta passagem dos Salmos:
“[...] tornou-se um texto favorito dos escritores cristãos. Os primeiros escritos canônicos da cristandade perpetuaram a concepção judaica dos deuses pagãos como ‘demônios,’[...]”(Jones, p. 37).
          Deste modo, a palavra grega daimôn que não tinha, de modo geral, a conotação de forças malignas, foi deformada numa guerra ideológica entre os judeus e seus vizinhos, passando a palavra daimôn significar exclusivamente força maligna, e a mesma estratégia foi adotada pelos cristãos. 

Ora, como não dizer que a passagem de João 4,22, não é generalizante se a parábola da mulher samaritana, segundo a mentalidade cristã, se adapta sim em ser dirigida às nações dos respectivos deuses anteriormente mencionados da Cananeia, Grécia, Egito e Roma? É fora de dúvida que em relação a todas as tradições destes respectivos povos, anteriores a Jesus, os judeus as colocam como tradições de falsos deuses, e isto é uma postura que conta com a concordância do cristão, já que este concorda na manutenção deste discurso judeu de que os demais deuses são falsos deuses ou uma multidão de forças do mal, isto é, as demais nações são governadas pelas forças do mal. Definitivamente é a edificação da postura de um lado ser o totalmente certo e o outro lado o totalmente errado.

Eis agora a linha de raciocínio que permite admitir que a passagem “a salvação vem dos judeus”, de João 4,22 é generalizante. Por exemplo, nada impediria um prosélito cristão fazer uma parábola de que uma moça romana (simbolizando a própria Roma, como no exemplo da moça samaritana que representa a própria Samaria) tinha tido três maridos, e que isso significava, que Roma tinha adorado Zeus, depois Apolo, e depois Hélio em sua forma Sol Invicto. O que importa para o prosélito cristão é que, dando continuidade a mesma linha de pensamento judaico, todos os outros deuses são falsos ou forças do mal, tenham o nome que for.

O Evangelho de Marcos põe na boca de Jesus que:
Ide por todo mundo, proclamai o Evangelho a toda criatura. Aquele que crer e for batizado será salvo; o que não o crer será condenado” (Marcos 16, 15-16).
São Justino (100-165 d.C.) diz ao prefeito de Roma que só a ‘fé’ dos cristãos é a verdadeira.[4]

Santo Agostinho (354-430 d.C.) em sua Cidade de Deus, a sua maneira, após afirmar que somente Jesus é intermediário entre os homens e Deus (livro 9, cap. 15), tenta dizer que os deuses e os demônios/daimôn não teriam interação benéfica com os homens, tentando refutar o médio-platônico Apuleio (125-170 d.C.), de modo a depreciar todas as divindades das demais tradições, e faz isso da seguinte maneira, buscando autoridade em Platão, que mesmo entre os cristãos impunha ainda grande respeito:
Não é verdade o dito que o mesmo platónico [Apuleio] atribui a Platão:
Nenhum deus se mistura com os homens.” (Cidade de Deus, livro 9, cap. 16).
Contra a afirmação de Santo Agostinho, consta no próprio Platão o seguinte:
Deus não se mistura ao homem e todavia a natureza demoníaca torna possível aos deuses terem geralmente relações com os homens e com eles conversarem tanto durante a vigília como durante o sono”. (Banquete 203 a)[5].
Depois de proferir que os povos que não são da comunidade ‘eleita por Deus’, isto é, que não são da comunidade cristã, como desamparados por Deus, por dependerem de daimôn ou deuses falsos, Agostinho faz o elogio à tradição de Israel, o qual reproduzo inteiramente para não haver risco de palavras ou frases isoladas e descontextualizadas:
Julgo que nem os próprios judeus se atrevem a pretender que ninguém além dos israelitas pertenceu a Deus desde quando começou a descendência de Israel com a reprovação de seu irmão mais velho. É verdade que nenhum outro povo se encontrou que fosse digno de se chamar propriamente o povo de Deus; mas que tenha havido, mesmo entre outros povos, homens que tenham pertencido, não por comunhão terrestre mas celeste, aos verdadeiros israelitas, cidadãos da pátria do Alto, não podem eles negá-lo; porque, se o negassem facilmente seriam convencidos como o santo e admirável Job, que não foi indígena, nem prosélito, isto é, adventício do povo de Israel, mas procedia do povo idumeu, onde nascera e onde veio a morrer; e, todavia, é de tal maneira louvado pela palavra divina que nenhum homem dos seus tempos se lhe pode igualar no que respeita a justiça e piedade. Embora nas Crónicas não encontremos qual foi a sua época, podemos, porém, deduzir do seu livro, - que, devido ao seu mérito, os israelitas admitem no seu cânon – que ele pertencia à terceira geração posterior a Israel.
Não duvido de que a divina Providência quis, apenas por intermédio deste, que ficássemos a saber que puderam existir também entre os outros povos homens que viveram em conformidade com Deus, procuraram agradar-lhe e pertencerem à Jerusalém espiritual. Não se deve crer que isto tenha sido concedido senão àqueles a quem Deus revelou o único mediador entre Deus e os homens – o homem Jesus Cristo. Aos antigos santos foi anunciado que Ele havia de vir em carne, tal qual nós O anunciámos como já chegado, para que por Ele uma só e a mesma fé conduza a Deus todos os que estão predestinados a tornarem-se Cidade de Deus, Casa de Deus, Templo de Deus. É certo que as profecias de outros acerca da graça de Deus por Jesus Cristo podem ser encaradas como inventadas pelos cristãos. Por isso, se há quem discuta a este respeito, nada há mais de seguro para convencer os estranhos, quaisquer que eles sejam, e torna-los nossos (se procedem com rectidão) do que apresentarem-se-lhes as predições divinas acerca de Cristo que estão escritas nos códices dos judeus; uma vez arrancados estes às suas próprias moradas e dispersos eles por toda a Terra para prestarem este testemunho, é que a Igreja de Cristo se estendeu por toda parte.” (Cidade de Deus, livro 18, cap. 47).
Dado todo o contexto, agora posso extrair a inserção de Agostinho de pretender colocar na memória do Mundo que no passado o judeu era o ‘povo eleito’:
É verdade que nenhum outro povo se encontrou que fosse digno de se chamar propriamente o povo de Deus [...]”
E também, essencial ao cristianismo é se basear no judaísmo, pois a disputa entre judeus e cristãos é para ser o ‘povo eleito’ de Deus:
É certo que as profecias de outros acerca da graça de Deus por Jesus Cristo podem ser encaradas como inventadas pelos cristãos. Por isso, se há quem discuta a este respeito, nada há mais de seguro para convencer os estranhos, quaisquer que eles sejam, e torna-los nossos (se procedem com rectidão) do que apresentarem-se-lhes as predições divinas acerca de Cristo que estão escritas nos códices dos judeus.
Egípcios, minoicos, hititas, micênicos, babilônios, assírios, persas, gregos, e romanos, as grandes civilizações que Agostinho certamente estudou ou leu menção em maior ou menor medida, também chineses e hindus cujas rotas comerciais que direta ou indiretamente o império macedônico conectou com Roma, em alguma medida, mesmo que ínfima, lhe devem ter chegado algo, e todas estas civilizações, nas palavras de Agostinho, pode-se inferir, estariam abaixo de Israel, pois “nenhum outro povo se encontrou que fosse digno de se chamar propriamente o povo de Deus”, enquanto incas, astecas e maias, também três povos que se enquadram na categoria de altas culturas, que dificilmente ele deve ter ouvido falar, mas existiam no período em que vivia, também eram, pela lógica dele, abaixo de Israel. O conjunto somado de toda criação destes povos das mais altas culturas da humanidade histórica, que captaram as leis inteligíveis do universo e plasmaram na terra, captação que só a mente superior, não reduzida aos imperativos biológicos do corpo, pode fazer, resultando em alta cultura material e espiritual, com duração de séculos, e inclusive milênios algumas delas como a egípcia e chinesa, não satisfizeram o Deus de Agostinho nos períodos anteriores à Jesus, pois “nenhum outro povo se encontrou que fosse digno de se chamar propriamente o povo de Deus”!

Ao menos na cristandade essa é a arqueologia cultural da humanidade! Ou a maioria dos cristãos acha que não? Que algum outro povo antes de cristo tinha mais valor que o povo de Israel?

É verdade que o proselitismo, a evangelização cristã, colocava para fins de concorrência com seus contemporâneos a pessoa de Jesus, e se para as grandes civilizações acima mencionadas, muitas já envelhecidas, corrompidas, degeneradas, em dissolução, na fase final de seus ciclos, o mesmo recurso era usado nas culturas mais novas que haviam no Ocidente, especialmente os indo-europeus, quando para fazerem estes abdicarem de suas tradições ancestrais os prosélitos recorriam à narrativa de que no período anterior à Jesus, “nenhum outro povo se encontrou que fosse digno de se chamar propriamente o povo de Deus,” uma vez que tal período de conversão dos povos mais jovens é um período, séculos IV e V d.C., que vive o próprio autor desta frase, Santo Agostinho.

É a mesma lógica da simbologia da passagem da conversa entre Jesus e a moça da Samaria em João 4,22, “A salvação vem dos judeus.” Uma lógica aplicada de modo generalizante, e desta vez para os indo-europeus, fossem celtas, ibéricos, germânicos, bálticos, eslavos, bretões, nórdicos etc, e que a história verdadeira da antiguidade do mundo era a que constava no Antigo Testamento.

Até aqui, vemos que apesar dos cristãos afirmarem que Jesus é um rompimento com o judaísmo, não obstante, a evangelização inevitavelmente procura sua base no judaísmo, recorrendo também frequentemente ao Antigo Testamento, tanto para interpretação histórica dos povos da antiguidade, pois aceita como história da antiguidade praticamente apenas o que está contido no Antigo Testamento, bem como precisa recorrer ao Antigo Testamento a profecia que permite para o cristão transição da condição de ‘povo eleito’ do judeu para os membros da ‘comunidade cristã’.

Notas


[1] The Cambridge Dictionary of Judaism & Jewish Culture, vocábulo Abraham.

[2] As autoridades responsáveis pelos estudos introdutórios na dos respectivos livros na 1ª edição (1956) da Bíblia de Jerusalém foram (pág. 7 da edição utilizada, Bíblia de Jerusalém, Editora Paulus, 1ª edição, 12 ª reimpressão, São Paulo, 2017):
Evangelho de Marcos: Joseph Huby.
Evangelho de Mateus: Maurice Benoît que também assinava como Pierre-Benoît.
Evangelho de Lucas: Émile Osty.
Evangelho de João: Donatien Mollat.
Nas demais edições, 1973 e 1998, o alto colegiado reunido pela École Biblique de Jérusalem avançou os estudos críticos, os quais resultaram na presente edição brasileira baseada na edição original francesa de 1988. Tendo isto em conta quando alguma citação referente aos quatro autores acima for feita será acompanhada de Et al., creditando assim os colaboradores do alto colegiado da École Biblique Jerusalém que avançaram os estudos dos especialistas citados.
Para a introdução sobre os sinóticos usarei para referenciar o autor simplesmente École Biblique uma vez que na edição em português da Bíblia de Jerusalém não é apontado o autor, e também pelo fato dos textos das edições terem sido atualizados pelo alto colegiado da École Biblique de Jérusalem. 

[3] Passagem em Between pagan and christians, de Christopher P. Jones, pág. 37. Na Bíblia de Jerusalém versão em português, vertida a partir da escritura em hebraico, está assim “Os deuses dos povos são todos vazios.”, contudo a nota a, pág. 965, referente à este versículo reitera que no grego corresponde à demônio.”

[4] Gustave Bardy, La Conversion al Cristianismo durante los primeiros siglos, Ediciones Encuentro, Madrid, 1990, p. 150.

[5] Passagem extraída por J. Dias Pereira, presente na própria nota referente a afirmação em questão, feita por Santo Agostinho, na edição utilizada da Cidade de Deus, volume II, pág. 859, nota 1.


          
Bibliografia:

Douglas Reed, The Controversy of Zion, Editora Veritas, Bullsbruck.

Simon Dubnow, Manual de la Historia Judia – (desde los origenes hasta nuestros dias), Editorial S. Sigal, 4ª edição, Buenos Aires, 1955. Tradução de Salomon Resnick.

The Jewish Encyclopedia – 12 volumes (editado por Isidore Singer), Kitav Publishing House, Inc, Nova Iorque, 1901-1906.

Bíblia de Jerusalém, Editora Paulus, 1ª edição, 12 ª reimpressão, São Paulo, 2017.

Franz Altheim, Historia de Roma – 3 volumes, Editora Uteha, Cidade do México, 1961/1964. Traduzido por Carlos Gerhard da 2ª edição original alemã Römische Geschichite, Editora Walter de Gruyter, Berlim.

Christopher P. Jones, Between pagan and christian, Harvard University Press, Massachusetts, 2014.

Julio Trebolle Barrera, A Bíblia judaica e a Bíblia Cristã – Introdução à história da Bíblia, Editora Vozes, Petrópolis, 1999, 2ª Edição. Traduzido da edição espanhol por Pe. Ramiro Mincato.

Antonio Piñero, Guía para entender el Nuevo Testamento, Editorial Trotta, Madrid, quarta edição, 2011.

Shlomoh Ben-Ami, Fuentes del Cristianismo, Antonio Piñero (editor), Ediciones El Almendro, Madrid, 1993. Capítulo “Palestina em el primer siglo de la era comum.”

Aaron Oppenheimer, Fuentes del Cristianismo, Antonio Piñero (editor), Ediciones El Almendro, Madrid, 1993. Capítulo “Sectas judias en tiempos de Jesus: fariseos, saduceos, los ‘amme ha’aretz’.”

Juan Mateos, Fuentes del Cristianismo, Antonio Piñero (editor), Ediciones El Almendro, Madrid, 1993. Capítulo “El Evangelio de Juan.”

Robert Henry Lightfoot, St. John Gospel – a commentary, Clarendon Oxford Press, Oxford, 1957.

John J. Clabeaux, ‘Abraham in Marcion’s Gospel and Epistles: Marcion and the Jews’ em When Judaism & Christianity Began – Essays in Memory of Abthony J. Saldarini Volume One –Christianity in the Beginning – (editado por Alan J. Avery-Peck, Daniel Harrington & Jacob Neusner), Supplements to the Journal for the Study of Judaism, vol. 85, Editora Brill, Leiden . Boston, 2004.

José Montserrat Torrents, Los Gnósticos, vol. 1/2, Editorial Gredos, Madrid, 1983.

Rainer Daehnhardt, Páginas Secretas da História de Portugal, Publicações Quipu, Lisboa, 1ª Edição, 1998. (especialmente o capítulo ‘O secretismo acerca dos vândalos’.)

Gustave Bardy, La Conversion al Cristianismo durante los primeiros siglos, Ediciones Encuentro, Madrid, 1990. Traduzido da edição francês, La conversion au Christianisme durant les premiers siècles, 1961, Desclée de Brower, Paris.

Mircea Eliade, Mito e Realidade, Editora Perspectiva, São Paulo. 6ª edição, 4ª reimpressão, 2000. Traduzido da edição inglesa de 1963 por Pola Civelli.

Mircea Eliade, História das Crenças e das Ideias Religiosas – 3 volumes, Editora Zahar, Rio de Janeiro, 2011. Tradução do original em francês de 1978 por Roberto Cortes Lacerda.

Andrew Joyce, The Occidental Observer (07/01/2017), Êxodo recorrente: Identidade judaica e Formação da História. Traduzido por Mykel Alexander.

M. Tulio Cicerón, Discursos III, Editorial Gredos, Madrid, 1991. Tradução do latim, introdução e notas por Jesús Aspa Cereza.

Santo Agostinho, A Cidade de Deus, Volume II (Livro IX a XV), Editora Calouste Gulbenkian, 2ª Edição, Lisboa, 2000. Tradução por J. Dias Pereira, a partir do original latino intitulado De Civitate Dei baseada na edição de B. Dombart e A. Kalb.

Santo Agostinho, A Cidade de Deus, Volume III (Livro XV a XXII), Editora Calouste Gulbenkian, 2ª Edição, Lisboa, 2000. Tradução por J. Dias Pereira, a partir do original latino intitulado De Civitate Dei baseada na edição de B. Dombart e A. Kalb.

Dicionário Houaiss, Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2001, 1ª edição.

The Cambridge Dictionary of Judaism & Jewish Culture, Cambridge University Press, Nova Iorque, 2011, (editado por Judith R. Baskin, Universidade de Oregon).   




Sobre o autor: Mykel Alexander é licenciado em História (Unimes), Bacharel em Farmácia (Unisantos) e está no último semestre de licenciatura em Filosofia (Unimes).
_________________________________________________________________________________                                                             
Relacionado, leia também:

Êxodo recorrente: Identidade judaica e Formação da História - Por Andrew Joyce

Controvérsia de Sião - por Knud Bjeld Eriksen

Politeísmo e Monoteísmo - Por Mykel Alexander

domingo, 23 de dezembro de 2018

Ocidente em risco de vida. Mas qual Ocidente? – parte 2 - Por Mykel Alexander

Primeira parte aqui.

Mykel Alexander

            Quando mencionei na primeira parte deste artigo que Grécia e Roma defenderam os valores do Ocidente, e que tais valores ocidentais eram indo-europeus, isto é, arianos, apenas abordei que em tal defesa houveram avanços e recuos territoriais na antiguidade nos quais em algumas situações, não raras, ocorriam vitórias em combates e conquistas de território, porém com perda de conteúdo original cultural e racial indo-europeu, isto é, ariano, os quais seriam a essência do Ocidente.

            Agora iremos começar a ver o que seria essa essência original do Ocidente.

            Na atualidade é certamente uma minoria da população, ao menos no Ocidente, que se preocupa com as origens de seu povo, de sua cultura e de sua civilização, e como tais expressões humanas se desenvolveram através dos tempos. E dentre esta minoria duas visões prevalecem, a saber, ou a judaico-cristã ou a iluminista-positivista.

            A visão judaico-cristã é determinista no sentido de que a conduta da história é determinada por Deus, mas pelo tipo de Deus difundido pelos padres e pastores conforme estes interpretam a Bíblia.

            A visão iluminista-positivista enxerga, em última análise, que os impulsos da matéria, no universo e no homem, neste último através de leis da bioquímica, determinam a conduta da história.

            Em comum entre a visão judaico-cristã e a visão iluminista-positivista é que ambas entendem a história se desenvolvendo linearmente, como uma evolução ininterrupta, donde ambas admitem um começo primitivo que resultará com o decorrer do tempo num estágio final, este seria o paraíso para os cristãos, e a época da razão para os iluministas-positivistas.

Para os cristãos dentro das correntes católicas essa meta final da existência humana é a felicidade no reino dos céus, normalmente com evasão do mundo material. Nas correntes evangélicas há uma inversão, e se evade do reino dos céus em busca do sucesso material. Há aqui, contudo, certa aversão à ciência quando essa desafia os dogmas religiosos, e o fanatismo prevalece. Todavia, os cristãos alegam representar e defender o Ocidente.

Para os iluministas-positivistas é a felicidade no reino da matéria, onde supostamente a razão dissipa as grosserias e irracionalidades humanas. Há aqui, contudo, certa aversão à religião, porém quando nessa se esboça alguma explicação que supera os postulados científicos, então passam a negar a existência de fatos que estejam além de sua compreensão, ao invés de reconhecerem a existência de tais fatos, que, porém, estão além de compreenderem apenas através da ciência ou do estágio atual da ciência. Todavia, os iluministas-positivistas alegam representar e defender o Ocidente.

            A visão dos greco-romanos difere de ambas.

            De modo sumamente resumido, a visão de mundo greco-romana parte de que há algo que ordena o mundo através de leis, sendo estas captáveis pela inteligência humana, e depois sendo tais leis reproduzidas na vida social em suas cidades. Theos (deus) ordena o caos (matéria) e cria o cosmos (universo). Esta seria uma maneira bem simplificada dessa visão. Em outras palavras, há uma ordem superior ao homem que atua no mundo natural, a qual o homem consegue traduzir para sua própria criação, que é a atividade humana nas cidades (em grego pólis, daí a origem da palavra política como arte ou técnica da convivência dos homens), e tal processo não ocorreria simplesmente como começo, meio e conclusão, de modo ininterrupto e linear, como na visão abraâmica do judaísmo, cristianismo e islamismo, bem como na visão iluminista-positivista, mas sim em ciclos, de começo, meio, fim, e novamente, começo, meio, fim, e assim por diante, daí os postulados de ciclos universais presente entre os estóicos e da reencarnação presente nos ciclos humanos entre os órficos, pitagóricos, platônicos e neoplatônicos.

          Há, portanto, uma lei universal que vale tanto para o mundo espiritual (das forças não materiais) como para o mundo material, mas também há algumas leis apenas para o mundo espiritual, para as quais a religião é o meio do homem conhecê-las, como também há leis apenas para o mundo material, para as quais a ciência é o meio do homem conhecê-las, porém ambas leis espiritual e material são obedientes à lei universal, a qual a filosofia é o meio do homem conhecê-la. Definitivamente relevante é que o mais antigo registro escrito indo-europeu, os Vedas, em seu primeiro hino traz justamente este conceito, de lei ordenadora universal na palavra Rta, da qual deriva a palavra germânica recht e subsequentemente a palavra inglesa right as quais ainda conservam reminiscências da relação direito e lei com ordem.

           Esse algotheos (deus) que ordena o mundo/universo é a referência central tanto para a religião (interiorização dos valores espirituais para entrar em comunhão com Deus) quanto para a filosofia (compreensão consciente e racional dos valores espirituais interagindo no mundo material) indo-europeias, de modo que ambas, religião e filosofia, se complementam, ao contrário de entrarem em conflito constante como ocorre nas tradições abraâmicas, ou seja, no judaísmo, cristianismo e islamismo.

            O greco-romano via divindade e humanidade fazendo parte de um todo, cada qual com suas respectivos atributos e responsabilidades; via mundo espiritual e material como interrelacionados e complementares, desde que de modo harmônico, ordenado, daí theos ser a inteligência e força ao mesmo tempo, que atua com sua força na matéria, caos, direcionando com sua inteligência a criação, cosmos. Deus faz isso no universo, e o homem grego, faz isso em si mesmo e no seu mundo. Espírito e matéria, religião e ciência, todos se complementam, e não entram em conflito. Há um ponto fundamental nisso que separa os indo-europeus, isto é, os arianos, dos abraâmicos (judeus, cristãos e muçulmanos), os arianos têm compromisso com a verdade, os abraâmicos têm compromisso com o fanatismo. É sempre fundamental relembrar essa passagem de Surendranath Dasgupta, historiador da filosofia hindu, de Cambridge, que apesar de mencionar a Índia, trata da mentalidade indo-europeia em sua raiz histórica, a védica:
“A antiga civilização da Índia foi uma unidade concreta de desenvolvimentos multilaterais na arte, arquitetura, literatura, religião, moral, e ciência tanto quanto foi compreendida naqueles dias. Mas a mais importante realização do pensamento hindu foi a filosofia. Ela era vista como o objetivo de todas as mais elevadas atividades teoréticas e práticas e ela indicou o ponto de unidade entre todas aparentes diversidades o qual o complexo crescimento da cultura sobre uma vasta área habitada por diferentes povos produziu.”[1]
            Arte, ciência, religião, moral e política são todas unificadas na filosofia pelo definitivo motivo que nesta a meta é a busca pela verdade, a qual nem sempre pode ser obtida definitivamente, mas a busca pela verdade por si mesma já dissipa os erros de má fé e fanatismo, deixando como obstáculo restante apenas o próprio limite de compreensão, o qual cada povo irá superando gradualmente com seu labor. O fundamental é que erros evitáveis como má fé ou fanatismo podem ser evitados se o compromisso for para com a verdade, e isso é a via da filosofia, a qual foi o eixo de vida dos gregos e depois dos romanos.

            Porém há algo a ser considerado. A filosofia em alto nível é para os que possuem essa inclinação, enquanto as armas em alto nível também são para os que possuem a respectiva inclinação, o mesmo vale para o trabalho, em alto nível, é para os que possuem esta respectiva inclinação, por isso na obra grega suprema da temática política, a República de Platão, o Estado era organizado de modo a acolher a disposição de seus membros em relação às suas inclinações, e, portanto teria em sua composição as frações de trabalhadores rurais, operários e artesãos, de guerreiros, e de legisladores, mas todos passariam pelo desenvolvimento básico da filosofia, que é o compromisso com a sabedoria, na medida do possível de suas inclinações, e o compromisso com a verdade sempre. Isto quer dizer que o ideal de Homem grego, independente de sua inclinação e função social, continha o compromisso para com a verdade, de modo que por mais que fosse um simples camponês, um grego deveria ter essa mente filosófica na qual tanto a espiritualidade quanto as questões técnicas, que são científicas em germe, já estariam presentes no mínimo rudimentarmente, ao contrário do que ocorre entre fanáticos abraâmicos, judeus, cristãos e islâmicos, bem como entre iluministas e positivistas, em que a admissão do mundo espiritual exclui o exame científico imediatamente, e vice-versa, quando a sobreposição de religião e ciência magoa algum dogma caro aos fanáticos ou algum paradigma caro aos iluministas-positivistas. 

               E esta natureza mental em que religião e ciência se complementam ao invés de se excluírem é a que sempre esteve presente no homem grego desde que a Grécia se recompôs de sua Idade Média (esta perdurou entre os séculos XII e VIII a.C.), levando os gregos a erigirem direta ou indiretamente as criações culturais e civilizatórias que deram as maiores alturas que o Ocidente viu. Nem judeus, nem cristãos, nem islâmicos, nem iluministas e nem positivistas pertencem a este Ocidente, em suas origens legítimas. 

Continua...


Nota


[1] Surendranath Dasgupta, A History of Indian Philosophy, Cambridge University Press, Londres, 1922, volume 1, página VII.


Sobre o autor: Mykel Alexander é licenciado em História (Unimes), Bacharel em Farmácia (Unisantos) e está no último semestre de licenciatura em Filosofia (Unimes).
________________________________________________________________________________

Relacionado, leia também:

Ocidente em risco de vida. Mas qual Ocidente? – parte 1 Por Mykel Alexander

O mundo dos indo-europeus - Por Alain de Benoist

Monoteísmo x Politeísmo – por Tomislav Sunić

Pode-se prever a história? - por Oswald Spengler

Oswald Spengler: Uma introdução para sua Vida e Idéias - por Keith Stimely

Biopolítica, racialismo, e nacionalismo na Grécia Antiga: Uma visão sumária - Por Guillaume Durocher (pseudônimo)

Politeísmo e Monoteísmo - Por Mykel Alexander

domingo, 16 de dezembro de 2018

Ocidente em risco de vida. Mas qual Ocidente? – parte 1 Por Mykel Alexander


Mykel Alexander

           Volta a ser corrente entre parte das massas, e não apenas entre indivíduos que sempre se interessaram pela história e tradição, o tema do Ocidente e os riscos que este enfrenta pela sua sobrevivência. A difusão de um tema entre as massas é em regra, na Idade Contemporânea, um trabalho decorrente dos grandes meios de comunicação, com relevância especial na atualidade para o papel das redes sociais.

            Para a geração atual de pessoas, desta segunda década dos anos 2000, que ouve dizer sobre o Ocidente em perigo, possivelmente passe despercebido que este tema sempre foi corrente, desde as origens históricas do Ocidente, isto é, históricas no sentido rigoroso de ter registro escrito, e isto pode ser remontado com farto registro até o século V a.C. especialmente em Heródoto e Tucídides na antiga Grécia, quando esta representava o Ocidente e a Pérsia o Oriente, duas culturas e duas civilizações frente a frente em luta. O historiador inglês Andrew Robert Burn (1902-1991) ao escrever sobre tal período intitulou seu livro, publicado em 1962, de modo emblemático: Persia and the Greeks – the Defense of the West, c. 546-478 b.C. (Pérsia e os gregos – a defesa do Ocidente – 546-478 a.C.).

            Na atualidade os cristãos católicos alegam que a Europa é a Igreja Católica e a Igreja Católica é a Europa, e que os cristãos sob o poder central da Igreja enfrentaram o Oriente, ou melhor, o mundo islâmico. Por outro lado, os cristãos evangélicos, os que possuem mínimo interesse em história, hoje, associando-se aos cristãos declaradamente sionistas, isto é, cristãos pró-judaísmo, afirmam que Israel é a barreira contra o Oriente, isto é, contra o islamismo ou o terrorismo do islamismo.

            A verdade deve ser apreciada somando vários fatores e considerando-os como convergindo para formar um quadro geral, com cada fator tendo sua importância e relevância.

            Em primeiro lugar a região da Anatólia, onde hoje compreende a parte da Turquia, Síria, Palestina, Israel e a orla banhada pelo Mar Mediterrâneo, foi colônia grega já no século VII a.C., depois estes, os gregos, foram rechaçados pelos persas os quais chegaram até à Grécia continental na Europa, porém, os gregos, por sua vez, repeliram os persas. Não havia nem cristãos nem muçulmanos então, mas era o Ocidente em sua mais profunda natureza, a cultura grega, que estava no centro do combate, contra a tradição persa, esta não sem misturas culturais que talvez tenham alterado a sua ancestral essência original, mas aí iríamos ter que voltar muito no tempo para determinar o que seria a cultura persa original, em sua essência indo-europeia, isto é, ariana. O fato é que quando se dá o choque entre gregos e persas nos séculos VI e V a.C., os persas não são mais apenas indo-europeus, e têm em sua civilização mistura semita. Então, este período de choque entre gregos, predominantemente arianos (em especial da família ariana dórica) e persas não mais predominantemente arianos, pode ser representado como Ocidente sendo ariano ou indo-europeu, e oriente sendo não predominantemente ariano ou não indo-europeu, pois já com mistura semita em sua composição.

            Territorialmente a disputa ficou, pode-se dizer, empatada, uma vez que os persas retiraram os gregos da Anatólia, continente asiático, e os gregos repeliram os persas do continente europeu. Outros “rounds” dessa luta foram travados, com vantagens para a Europa através da expansão de Alexandre o Grande até parte da Índia, conquistando a Anatólia, Egito, Pérsia, Assíria e Babilônia no trajeto durante o século IV a.C. O reino liderando a Europa era obviamente a pátria de Alexandre, a Macedônia. É fundamental considerar que a expansão macedônica permitiu alguns avanços de intercâmbio cultural ao mesmo tempo que abriu as portas para a miscigenação, esta sendo algo sempre evitado pela cultura original ariana ou indo-europeia. Então em termos de conquistas territoriais a luta entre Ocidente, representado não mais pelos gregos, mas sim pelos macedônios, deu vitória aos ocidentais sobre os derrotados povos do Oriente, emblematicamente os persas e, por outro lado, permitiu o influxo para o Ocidente tanto de cultura ariana, isto é, indo-europeia, procedente de certos grupos indo-europeus da Pérsia e Índia, como permitiu ao mesmo tempo a entrada de cultura semita, incluindo a judaica, portanto, se considerarmos o Ocidente como ariano, ou indo-europeu, em essência, culturalmente, através das expansões macedônicas de Alexandre o Grande, houve intrusão na Europa de cultura não-ariana, isto é, houve entrada de cultura semita, entre outras.

            Consequentemente, o Ocidente sendo em essência ariano, ou indo-europeu, e tendo em vista a intrusão tanto cultural quanto racial de componente não ariano, através das expansões de Alexandre o Grande, já podia vislumbrar nessa conjuntura uma ameaça a sua essência original ariana, isto é, indo-europeia.

            O principal gênio do Ocidente, Platão, através de toda sua obra, advertiu a importância fundamental para um povo da preservação de sua raça, cultura e de seus modelos de excelência, tentando não só esclarecer tais conceitos, como resgatar as ancestrais tradições dos gregos diante do esquecimento e enfraquecimento destas pelo desgaste do tempo e pela intrusão de outras culturas e raças na Grécia.

            Com o estabelecimento do império macedônico de Alexandre, que foi de curtíssima duração, seguido da sua rápida fragmentação até assumir uma relativa estabilidade na formação dos impérios dos ptolomaicos no Egito, dos selêucidas na Mesopotâmia e Ásia Central, dos atálidas na Anatólia e dos antígonos na Macedônia, todos os quais não possuíam as barreiras culturais e raciais presentes, de modo geral, nos povos indo-europeus, restavam na Europa mediterrânea tais barreiras apenas em redutos gregos que após a morte de Alexandre o Grande restituíram sua autonomia, e na crescente potência de Roma, que também tendo suas origens arianas, indo-europeias, nas ramificações do grupo itálico (latinos, faliscos, eugâneos e vénetos) que vinham do centro da Europa para o Mediterrâneo empurradas pelos germânicos, conservava os costumes tradicionais indo-europeus, isto é, arianos, de preservação da raça e da cultura.

            Houve um encontro destas duas culturas de origens indo-europeias, isto é, arianas, grega e romana, cuja combinação deu forma ao domínio Romano que iria além de se impor sobre os povos da própria Itália, retomar a unidade quebrada no mundo de então, centrado no Mediterrâneo, circundado por Europa, norte da África e parte da Ásia menor entre os séculos III e II a.C.

            Como dito antes, as consequências das expansões de Alexandre o Grande resultaram na intrusão racial e cultural exótica nos domínios de seu Império, inclusive na Grécia, que apesar de ainda ser uma reserva cultural ariana, isto é, indo-europeia, todavia tinha sofrido grande esgotamento, sendo então nesse período dos séculos III e II a.C. os depositários da maior reserva cultural e racial ariana do mundo mediterrâneo não mais os gregos, mas sim os romanos. Eis que eram estes, os romanos, os conservadores de então, pois conservavam os valores indo-europeus e eram bem críticos de culturas exóticas. A força moral romana, através de coesão política e cultural, deu à República romana o poder sobre parte do Mediterrâneo durante os séculos III e II a.C. mesmo antes da filosofia chegar aos romanos com os estóicos Panécio de Rodes e Possidônio de Apamea, ambos gregos, o que evidencia que mais valia ter um povo moralmente saudável, mesmo sem as maiores alturas do saber que o povo grego tinha atingido, do que ser como os gregos de então, que padeciam de esgotamento de força moral, apesar de terem patrimônio cultural e civilizatório do mais alto nível. A combinação de gregos e romanos foi, respectivamente, a combinação da filosofia, arte e ciência gregas com os costumes, isto é, moral, e política romanas. A maior pureza ariana nesse período dos romanos foi sendo gradualmente complementada com o profundo saber grego.

            Quais seriam essas características da moral romana?
1ª Intensa mentalidade religiosa, entendendo que as atividades do romano são a combinação do esforço deste com a força divina. Nunca estão separados homem e divindade no Universo. A ação na terra reflete nos mundos celestiais e estes refletem na terra. 
2ª Valorização da palavra permeando todas as classes da sociedade romana. Havia um compromisso em manter a palavra, representado no termo ‘fides’. É uma instituição arcaica da mentalidade indo-europeia. 
3ª Harmonia entre a vida privada e a vida coletiva, mas cuja mentalidade é vinculada com o passado e projeta-se para o futuro, mesmo que isso signifique uma vida presente de sacrifícios e renúncias. No final, os romanos portavam-se como “nós romanos” ao invés do individualista “eu fulano, eu ciclano”. O resultado é uma mentalidade de empreendedorismo e iniciativa individual em todos sentidos, do civil ao militar, combinada com fortíssimo espírito de equipe.
4ª Visão do universo penetrante, buscando ao menos compreender as leis básicas deste, SEM FANATISMO. 
5ª Preferência ao ataque frontal e decisivo, combinando contundência, estratégia e tenacidade. Isso resultou em algumas derrotas por não mudarem de estratégia, porém proporcionou conquistas e vitórias de proporções absolutamente superiores aos reveses.
            Novamente, temos os valores indo-europeus, isto é, arianos, como reserva original da Europa, do Ocidente, sendo defendidos contra valores exóticos, principalmente semitas, o que incluía especialmente judeus, já que nem cristãos nem muçulmanos existiam no século II a.C. durante o domínio da República Romana em parte do Mediterrâneo, norte da África e Ásia Menor. Em suma, até aqui, século II a.C., nada mudou, a Europa, isto é, o Ocidente, legitimamente indo-europeu, isto é, ariano, sendo defendido do risco de existência pelas reservas raciais, morais e culturais arianas greco-romanas.

Continua...


* Em 14/01/2019 atendendo dúvidas de foristas, foi aditado no texto deste artigo as cinco enumeradas características romanas, que estavam em nota, porém não tinham sido previamente incluídas.

Sobre o autor: Mykel Alexander é licenciado em História (Unimes), Bacharel em Farmácia (Unisantos) e está no último semestre de licenciatura em Filosofia (Unimes).

_________________________________________________________________________________

Relacionado, leia também:

O mundo dos indo-europeus - Por Alain de Benoist

Monoteísmo x Politeísmo – por Tomislav Sunić

Pode-se prever a história? - por Oswald Spengler

Oswald Spengler: Uma introdução para sua Vida e Idéias - por Keith Stimely

Biopolítica, racialismo, e nacionalismo na Grécia Antiga: Uma visão sumária - Por Guillaume Durocher (pseudônimo)

Politeísmo e Monoteísmo - Por Mykel Alexander