domingo, 21 de julho de 2019

O que é realmente “cultura”? - parte 1 - Por Mykel Alexander


Mykel Alexander
                               O que é cultura?

            Parece uma pergunta fácil de responder, já que a palavra cultura faz parte do vocabulário geral de praticamente qualquer povo do mundo ocidental. Mas quando um indivíduo se depara com tal pergunta, possivelmente ele subitamente perceba que se trata de uma palavra tão usada que ele tenha mais dificuldade em responder a indagação do que poderia supor, talvez porque mais de um significado atribuído a palavra cultura possa lhe vir na mente.

            Dentre tantos conflitos nas últimas décadas, certamente podemos afirmar que o conflito cultural ou o conflito de culturas ocupa uma posição das mais destacadas. Abundaram notícias nos meios de comunicação que afirmaram ser devido às diferenças culturais as irrupções de violência que ocorrem em vários locais do mundo, no Ocidente e no Oriente, no hemisfério norte e no sul. Seria a cultura então um problema? Mas então o que é cultura afinal?

            Atualmente se fizermos essa pergunta para várias pessoas, iremos inevitavelmente ter respostas contraditórias por parte dos que irão emitir algum parecer, mas talvez alguns nem tentem alguma explicação e irão até admitir que não sabem o que é a cultura. De modo generalizado essa conclusão também foi a de André Malraux (1901-1976) que chegou a admitir a ignorância das pessoas sobre o que era cultura:
“Il faut bien comprendre qu'un fait extrêmement mystérieux se produit aujourd'hui dans le monde entier: les peuples sont en train de demander la culture, alors qu'ils ne savent pas ce que c'est.[1]” (Deve ser compreendido que um fato extremamente misterioso está se produzindo em todo o mundo hoje: as pessoas estão demandando cultura, enquanto elas não sabem o que é isso.)
Ao menos um indivíduo que se sinta perdido em responder tal indagação terá algum respaldo para sua hesitação, já que houve até um episódio com o próprio André Malraux, então o mui celebrado ministro da Cultura francês, que anteriormente admitiu ele mesmo não saber responder o que era cultura:
“Vous savez que j'ai obtenu quelque succès au conseil des ministres lorsque j'ai dit que j'étais le seul à ne pas savoir ce qu'était la culture. En définitive, c'est vrai. ( Sourires .)[2]” (Você sabe que obtive algum sucesso no gabinete quando disse que era o único que não sabia o que era cultura. Em definitivo, é verdade. (Sorrisos)).
André Malraux (1901-1976), o célebre ministro de Cultura francês. O insólito caso
em que o mais famoso ministro da cultura do mundo não sabia o que era cultura.
Foto domínio público - Wikipédia   Bibliothèque nationale de France

A dificuldade de definir o significado das palavras

            A verdade é que definir o que é algo não é tão simples como possa sugerir em nossa mente a voz da impulsividade. A razão para isto é que a precisão de conceitos e seus respectivos conteúdos operam na mente numa quantidade e velocidade as quais necessitam, para serem expressadas verbalmente de modo satisfatoriamente compreensível a outra pessoa, de um vocabulário amplo e de um domínio na formulação de sentenças que relaciona conceitos e palavras. Relacionar conceitos e palavras foi algo que os antigos gregos desenvolveram com excelência, e tendo em plena consideração as dificuldades acima mencionadas. O ponto mais fundamental dos gregos nessa questão residia na psicologia deles onde a razão era resultado de uma equação psicológica, a qual explicava como se relacionava no homem seus sentimentos e racionalidade, sendo que estes dois na concepção grega compunham a alma do homem, isto é, a alma era vista como uma reunião de sentimento e razão, mas para fins explicativos irei usar não a palavra alma, pois esta adquiriu amplo significado o qual se fosse abordado agora complicaria mais que ajudaria o tema aqui tratado, e por isso a palavra mente será usada em lugar da palavra alma justamente pela fácil constatação que as pessoas na atualidade automaticamente incluem razão e emoção como componentes da mente

            Essa equação psicológica baseava na compreensão profunda que os gregos tinham de como opera a mente humana. Pode-se dizer que eles conceberam um tipo de anatomia da mente humana, a qual de modo simplificado continha uma parte capaz de compreender instantaneamente os conceitos e era denominada de nous (νοῠς, comumente traduzida por intelecto ou mente ou inteligência ou pensamento) e situada na ‘parte’ superior da mente, uma outra parte que é vigorosa e ao mesmo tempo amorosa e obediente à verdade e honra, denominada de thymos (τιμῇς, pode-se entender como força e coragem) e sendo o centro de coragem, estando situada na ‘parte’ intermediária da mente, e uma parte que residia os desejos, apetites e impulsos a qual era denominada de epithūmíā (ἐπιθυμία, pode-se entender como desejo), situando-se na ‘parte’ inferior da mente. Conforme a mentalidade da época equaciona estas três ‘partes’ da mente, resulta em diferentes maneiras de se pensar, usando mais razão, mais coragem ou mais desejo[3]

A definição de conceitos e palavras foi e é motivo de investigações e de disputas.  Cada época apresenta suas temáticas mais marcantes ou um modo de pensar característico, e se na antiguidade a mente humana, com a profundidade filosófica grega ainda viva, priorizava a precisão, isto é, a definição, dos conceitos baseando-se na abstração mais impessoal e racional, de modo que as palavras utilizadas fossem o menos vagas e mais precisas possíveis, por outro lado na atualidade a mentalidade ocidental faz o uso das palavras, baseando-se não tanto na racionalidade e na precisão, mas sim num critério do que é agradável ou desagradável de conhecer mais profundamente.

Assim colocado, pode-se dizer que na Antiguidade a livre reflexão sobre um conceito precedia a fixação da palavra na mente no processo educativo, de modo que a força e coragem (thymos) serviam mais à razão (nous) que ao desejo (epithūmíā), importando mais a conclusão da reflexão em si mesma do que as inclinações motivadas por desejo e os impulsos que motivam este, fossem medo, carências ou apetites. O resultado é que na Antiguidade o conceito primeiro era examinado pelo indivíduo através da pura reflexão e somente depois fixado numa palavraO processo mental opera aqui da ‘parte’ superior da mente para a ‘parte’ inferior, surgindo a partir da razão (nous).

 Por outro lado, na atualidade pode-se constatar que a atual mentalidade é a de tender a assimilar uma palavra automaticamente sem priorizar a reflexão prévia do conceito, aceitando quase passivamente a carga de emoções e afetos que as palavras acumularam conforme os significados foram nelas adicionados, subtraídos ou alterados no decorrer dos períodos posteriores à Antiguidade, e deixando tal processo de assimilação mental sujeito ao gosto das preferências pessoais, em nosso exemplo correspondendo ao desejo (epithūmíā), o que neste caso ocorre sem a intervenção necessária da força e da coragem (thymos) que impediria de se associar passiva e automaticamente uma palavra a um conceito, mas obrigaria, com força e coragem que tal associação ocorresse somente com aprovação da razão (nous), com o mínimo de interferências possíveis sobre a pura reflexão. O resultado é que na atualidade a palavra é aceita quase sempre passivamente em seu significado final conforme chegou até a atualidade sem a devida reflexão dos conceitos que anterior e originalmente possuía, sem que se saiba minimamente discernir se as alterações, adições e subtrações de significado se justificam. O processo mental opera aqui da ‘parte’ inferior da mente para a ‘parte’ superior, surgindo a parir do desejo (epithūmíā). 
 
Levantado o questionamento sobre o que é realmente cultura, e tendo em consideração que a mente das pessoas, conforme acima exposto, não possui a mesma dinâmica, talvez a sensação que hoje prevaleça seja mesmo a de que cultura é algo disputável, onde cada boca arrisca um significado do que é cultura, mas, não obstante, se ao tentarem investigar tal questão, e após ouvirem opiniões de todos os tipos, pode ser bem provável que muitos desistam no meio do processo ao pressentirem que de fato não se sabe exatamente o que é cultura. Então, por onde começar a buscar com alguma segurança o verdadeiro significado da palavra cultura? A resposta para isso é a mais simples de todas: um dicionário.

            É inevitável, logo se descobre, após consultar um bom dicionário que a palavra cultura terá vários significados por ela ter vários usos, mas as palavras, conforme o estudo da filologia evidencia, costumam ter menos ambiguidade de significados em seus estágios iniciais, quando são restritas ao ambiente original, do que quando se difundem e alcançam ambientes e países diferentes através dos tempos, podendo não raramente perderem o significado original que possuíam originalmente, e justamente esta última situação parece ser a de que padece atualmente a palavra cultura.

            O primeiro passo para saber o que é cultura é o mais simples possível, a saber, consultar um bom dicionário. No dicionário Houaiss dentre alguns dos principais usos da palavra cultura temos[4]:
a) “Ação, processo ou efeito de cultivar a terra; lavra, cultivo” do solo. Trata-se de uso agronômico.
b) “Criação de alguns animais” como peixes. 
c) “O cabedal de conhecimentos, a ilustração, o saber de uma pessoa ou grupo social.” 
d) “Conjunto de padrões de comportamento, crenças, conhecimentos, costumes etc. que distinguem um grupo social.” 
e) “Forma ou etapa evolutiva das tradições e valores intelectuais, morais, espirituais”, tal como cultura clássica ou cultura muçulmana. 
f) “Complexo de atividades, instituições, padrões sociais ligados à criação e difusão das belas-artes, ciências humanas e afins.” 
g) “Aprimoramento regular do organismo mediante a prática do esporte, da ginástica.” 
h) Produções cinematográficas, musicais, teatrais etc. sendo eruditas e restritas a pequenos redutos ou amplamente difundidas em meios de comunicação de massas. 
i) “Conjunto de atitudes, linguagens, conhecimentos, costumes etc. explicita ou implicitamente difundidos e estimulados pelos meios de comunicação mantidos ou utilizados pelo Estado e suas autoridades constituídas.” 
j) A etimologia da palavra cultura é originária do latim, cultūra, ‘ação de cuidar, tratar, venerar (no sentido físico e moral)’.
            Todas as linhas de usos acima são sem muito esforço bem compreensíveis e relacionáveis com nosso cotidiano, e recorrerei constantemente a elas através deste artigo para exemplificar determinadas situações históricas que serão mencionadas, uma vez que procedem de um dicionário de excelência no idioma português destinado à consulta geral de qualquer indivíduo instruído basicamente. Recorrerei sistematicamente a cada uma das definições acima elencadas pelas letras, a, b, c, etc, mesmo sob risco de recair em monotonia, conquanto que facilite a compreensão dos exemplos utilizados através desta exposição.

Continua em O que é realmente “cultura”? - parte 2 - Por Mykel Alexander


Notas


[1] Nota do autor: André Malraux: Apresentação do orçamento da cultura na Assembleia Nacional, 27 de outubro de 1966:

[2] Nota do autor: André Malraux: Apresentação do orçamento de assuntos culturais, 9 de novembro de 1963:

[3] Nota do autor: Sobre os componentes da alma/mente abordados, ver:
- Kurt von Fritz, Classical Philology, vol. 38, nº 2 (abril, 1943), pp. 79-93. ΝΟΟΣ and Noein in Homeric Poems.
- Kurt von Fritz, Classical Philology, vol. 40, nº 4 (outubro, 1945), pp. 223-242. ΝΟΟΣ, Noein and Their  Derivatives in Pre-Socratic Philosophy (Excluding Anaxagoras): Part I. From the Beginnings to Parmenides.
- Kurt von Fritz, Classical Philology, vol. 40, nº 4 (janeiro, 1946), pp. 12-34. ΝΟΟΣ, Noein and Their Derivatives in Pre-Socratic Philosophy (Excluding Anaxagoras): Part II. The Post-Parmenidean Period.
- Jean Chateau, As grandes psicologias na antiguidade, Publicações Europa-América, Lisboa, 1978. Originalmente escrito em francês 1978, tradução de Antônio Gonçalves.
- Jean Bremmer, The Early Greek Concept of the Soul, Princeton University Press, Princeton (USA), 1983.
- Giovanni Reale, História da Filosofia Grega e Romana – Vol. IX – Léxico da Filosofia Grega e Romana, Edições Loyola, edição corrigida, São Paulo, 2014. Originalmente escrito em italiano em 1975-1980, 10ª edição de 1992, traduzida ao português por Henrique Cláudio de Lima Vaz e Marcelo Perine.
  
[4] Nota do autor: As definições foram elencadas valendo-me de letras, a, b, c etc., sem incluir todas definições contidas no dicionário Houaiss (Editora Objetiva, Rio de Janeiro, 2001, 1ª edição), pois selecionei as que estimei ser mais difundidas nos usos e costumes na atualidade ocidental e suficientes para a proposta deste artigo.
   
          
     
Sobre o autor: Mykel Alexander possui Licenciatura em História (Unimes, 2018), Licenciatura em Filosofia (Unimes, 2019) e Bacharel em Farmácia (Unisantos, 2000). 


2 comentários:

  1. País culto possui baixíssimo Coeficiente de Gini e quase inexistente população carcerária.

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  2. Excelente artigo! Em poucas palavras percebe se a profundidade dos costumes que a civilização grega tinha, por exemplo a construção do conceito mente.

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