quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

{Retrospectiva 2022 – Guerra Ucrânia/OTAN x Rússia} - É possível realmente saber o que aconteceu e está acontecendo na Ucrânia? – parte 2 - por Jacques Baud

 Continuação de {Retrospectiva 2022 – Guerra Ucrânia/OTAN x Rússia} - É possível realmente saber o que aconteceu e está acontecendo na Ucrânia? – parte 1 - por Boyd D. Cathey

Jacques Baud


A situação militar na Ucrânia

https://cf2r.org/documentation/la-situation-militaire-en-ukraine/

Março de 2022, por Jacques Baud

 

Parte Um: O Caminho Para a Guerra

Por anos, do Mali ao Afeganistão, trabalhei pela paz e arrisquei minha vida por ela. Não é uma questão, portanto, de justificar a guerra, mas de entender o que nos levou a ela. [….]

Vamos tentar examinar as raízes do conflito [ucraniano]. Começa com aqueles*1 que nos últimos oito anos falam sobre “separatistas” ou “independentistas” do Donbass. Este é um nome impróprio. Os referendos conduzidos pelas duas autoproclamadas repúblicas de Donetsk e Lugansk em maio de 2014 não foram referendos de “independência” (независимость), como alguns jornalistas inescrupulosos*2 afirmaram, mas referendos*3 de “autodeterminação” ou “autonomia” (самостоятельность). O qualificador “pró-russo” sugere que a Rússia era parte do conflito, o que não era o caso, e o termo “falantes de russo” teria sido mais honesto. Além disso, esses referendos foram conduzidos contra o conselho de Vladimir Putin.

De fato, essas repúblicas não buscavam se separar da Ucrânia, mas ter um status de autonomia, garantindo-lhes o uso da língua russa como língua oficial – porque o primeiro ato legislativo do novo governo resultante da derrubada patrocinada pelos americanos do presidente [eleito democraticamente] Yanukovych, foi a abolição, em 23 de fevereiro de 2014, da lei Kivalov-Kolesnichenko de 2012 que tornou o russo uma língua oficial na Ucrânia. Um pouco como se golpistas alemães decidissem que o francês e o italiano não seriam mais línguas oficiais na Suíça.

Esta decisão causou uma tempestade na população de língua russa. O resultado foi uma repressão forte e impetuosa contra as regiões de língua russa (Odessa, Dnepropetrovsk, Kharkov, Lugansk e Donetsk), que começou em fevereiro de 2014 e levou a uma militarização da situação e a alguns massacres horríveis da população russa (em Odessa e Mariupol, as mais notáveis).

Neste estágio, muito rígido e imerso numa abordagem doutrinária (baseada em crenças fixas ao invés de considerar problemas práticos) das operações, o estado-maior ucraniano subjugou o inimigo, mas sem realmente conseguir prevalecer. A guerra travada pelos autonomistas [consistiu em]... operações altamente móveis conduzidas com meios leves. Com uma abordagem mais flexível e menos doutrinária (mais prática), os rebeldes conseguiram explorar a inércia das forças ucranianas para repetidamente “os prenderem numa armadilha”.

Em 2014, quando eu estava na OTAN, eu era responsável pela luta contra a proliferação de armas ligeiras e tentávamos detectar entregas de armas russas aos rebeldes, para ver se Moscou estava envolvida. As informações que recebemos vieram quase inteiramente dos serviços de inteligência poloneses e não “encaixaram” com as informações vindas da OSCE [Organização para Segurança e Cooperação na Europa] – e apesar das alegações bastante grosseiras, não houve entrega de armas e equipamento militar da Rússia.

Os rebeldes estavam armados graças à deserção de unidades ucranianas de língua russa que passaram para o lado rebelde. À medida que os fracassos ucranianos continuavam, os batalhões de tanques, artilharia e artilharia antiaérea engrossavam as fileiras dos autonomistas. Foi isso que levou os ucranianos a se comprometerem com os Acordos de Minsk.

Mas logo após assinar o Acordo de Minsk 1, o presidente ucraniano Petro Poroshenko lançou uma massiva “operação antiterrorista” (ATO/Антитерористична операція) contra o Donbass. Pobremente assessorados pelos oficiais da OTAN, os ucranianos sofreram uma derrota esmagadora em Debaltsevo, o que os obrigou a se engajar nos Acordos de Minsk 2.

É essencial recordar aqui que os Acordos de Minsk 1 (setembro de 2014) e Minsk 2 (fevereiro de 2015) não previam a separação ou independência das Repúblicas, mas a sua autonomia no quadro da Ucrânia. Aqueles que têm lido os Acordos*4 (são poucos os que realmente o fizeram) notarão que está escrito que o estatuto das Repúblicas seria negociado entre Kiev e os representantes das Repúblicas, para uma solução interna na Ucrânia.

Este é o porquê desde 2014, a Rússia tem exigido sistematicamente a implementação dos Acordos de Minsk, recusando-se a fazer parte das negociações, porque era um assunto interno da Ucrânia. Por outro lado, o Ocidente – liderado pela França – tentou sistematicamente substituir os Acordos de Minsk pelo “formato da Normandia”, que colocava russos e ucranianos frente a frente. No entanto, vamos lembrar que nunca houve tropas russas no Donbass antes de 23-24 de fevereiro de 2022. Além disso, os observadores da OSCE {Organização para Segurança e Cooperação na Europa} nunca têm observado*5 o menor traço de unidades russas operando no Donbass antes disso. Por exemplo, o mapa de inteligência dos EUA publicado pelo Washington Post*6 em 3 de dezembro de 2021 não mostra as tropas russas no Donbass.

Em outubro de 2015, Vasyl Hrytsak, diretor do Serviço de Segurança Ucraniano (SBU), confessou*7 que apenas 56 combatentes russos foram observados no Donbass. Isso era exatamente comparável aos suíços que foram lutar na Bósnia nos finais de semana, nos anos 1990, ou aos franceses que vão lutar na Ucrânia hoje.

O exército ucraniano estava então em um estado deplorável. Em outubro de 2018, após quatro anos de guerra, o principal promotor militar ucraniano, Anatoly Matios, afirmou*8 que a Ucrânia havia perdido 2.700 homens no Donbass: 891 por doenças, 318 por acidentes rodoviários, 177 por outros acidentes, 175 por intoxicações (álcool, drogas), 172 por manuseio negligente de armas, 101 por violação de normas de segurança, 228 por assassinato e 615 por suicídio.

De fato, o exército ucraniano foi minado pela corrupção de seus quadros e não contava mais com o apoio da população. De acordo com um relatório do Ministério do Interior britânico*9, na convocação de reservistas de março/abril de 2014, 70% não compareceram à primeira sessão, 80% à segunda, 90% à terceira e 95% à quarta. Em outubro/novembro de 2017, 70% dos recrutas*10 não compareceram à campanha de convocação “Outono de 2017”. Isso sem contar os suicídios*11 e deserções*12 (muitas vezes a cargo dos autonomistas), que atingiram até 30% da força de trabalho na área da ATO. Os jovens ucranianos se recusaram a ir lutar no Donbass e preferiram a emigração, o que também explica, pelo menos em parte, o déficit demográfico do país.

O Ministério da Defesa ucraniano então recorreu à OTAN para ajudar a tornar suas forças armadas mais “atraentes”. Já tendo trabalhado em projetos semelhantes no âmbito das Nações Unidas, fui convidado pela OTAN para participar de um programa para restaurar a imagem das forças armadas ucranianas. Mas este é um processo de longo prazo e os ucranianos queriam se mover rapidamente.

Então, para compensar a falta de soldados, o governo ucraniano recorreu a milícias paramilitares…. Em 2020, eles constituíam cerca de 40% das forças ucranianas e somavam cerca de 102.000 homens, de acordo com a Reuters.*13 Eles foram armados, financiados e treinados pelos Estados Unidos, Grã-Bretanha, Canadá e França. Foram mais de 19 nacionalidades.

Essas milícias tinham estado operando no Donbass desde 2014, com suporte ocidental. Mesmo que alguém possa argumentar sobre o termo “nazista”, permanece o fato de que essas milícias são violentas, transmitem uma ideologia repugnante e são virulentamente antissemitas#b…[e] são compostas por indivíduos fanáticos e brutais. O mais conhecido deles é o Regimento Azov, cujo emblema é uma reminiscência da 2ª Divisão Panzer SS Das Reich, que é reverenciada na Ucrânia por libertar Kharkov dos soviéticos em 1943, antes de realizar o massacre de Oradour-sur-Glane em 1944 na França. [….]

A caracterização dos paramilitares ucranianos como “nazistas” ou “neonazistas” é considerada propaganda russa.*14 Mas essa não é a opinião do Times of Israel*15 ou do Centro de Contraterrorismo da Academia de West Point.*16 Em 2014, a revista Newsweek*17 parecia associá-los mais com… o Estado Islâmico. Faça sua escolha!

Assim, o Ocidente apoiou e continuou a armar milícias que são culpadas de inúmeros crimes contra a população civil desde 2014:*18 estupros, torturas e massacres….

A integração dessas forças paramilitares na Guarda Nacional Ucraniana não foi de forma alguma acompanhada de uma “desnazificação”, como alguns reivindicam*19.

Entre os muitos exemplos, o da insígnia do Regimento Azov é instrutivo:

 

{1ª Insígnia: 2ª Panzerdivision SS "Das Reich" (Tomou Kharkov do Exército Vermelho; mais tarde responsável, alegadamente, embora com controvérsias, pelo massacre de Oradour-sur-Glane, na França). 2ª Insígnia: Ideia da Nação Svoboda, Partido Nacional Socialista, instrumental na revolução de Maidan (novembro de 2013-fevereiro de 2014). Declarada uma organização neonazista pelo Conselho Judaico Mundial; considerados contrários aos valores europeus pelo Parlamento Europeu. 3ª Insígnia: Patriot UKraini (Patriotas da Ucrânia). Um grupo de milícia que emergiu do Svoboda. Seus membros formam a coluna vertebral do Batalhão AZOV. 4ª Insígnia: Batalhão AZOV, Unidade Paramilitar. Feita oficial em 05 de maio de 2014. Feita regimento; integrado dento do exército pelo Ministério do Interior. Designação oficial: Destacamento das Forças Especiais AZOV."}

 

Em 2022, de forma muito esquematizada, as forças armadas ucranianas que combatem a ofensiva russa foram organizadas da seguinte forma:

• O Exército, subordinado ao Ministério da Defesa. Ele é organizado em 3 corpos de exército e composto por formações de manobra (tanques, artilharia pesada, mísseis, etc.).

• A Guarda Nacional, que depende do Ministério do Interior e está organizada em 5 comandos territoriais.

A Guarda Nacional é, portanto, uma força de defesa territorial que não faz parte do exército ucraniano. Inclui milícias paramilitares, denominadas “batalhões de voluntários” (добровольчі батальйоні), também conhecidas pelo sugestivo nome de “batalhões de represália”, e compostas por infantaria. Principalmente treinados para o combate urbano, eles agora defendem cidades como Kharkov, Mariupol, Odessa, Kiev, etc.

Tradução por Davi Ciampa Heras

Revisão e palavras entre chaves por Mykel Alexander


Notas

*1 Fonte utilizada por Jacques Baud: Les séparatistes auraient renforcé leurs capacités d'attaque en Ukraine, 11 de maio de 2015, RTS.

https://www.rts.ch/info/monde/6772950-les-separatistes-auraient-renforce-leurs-capacites-dattaque-en-ukraine.html 

*2 Fonte utilizada por Jacques Baud: Près de 90% de oui à l'indépendance à Donetsk selon les pro-Russes, 12 de maio de 2014, RTS.

https://www.rts.ch/info/monde/5839879-pres-de-90-de-oui-a-lindependance-a-donetsk-selon-les-prorusses.html 

*5 Fonte utilizada por Jacques Baud: Counting the Dead in Europe’s Forgotten War, Amy Mackinnon, 25 de outubro de 2018. Foreign Policy.

https://foreignpolicy.com/2018/10/25/counting-the-dead-in-europes-forgotten-war-ukraine-conflict-donbass-osce/ 

*6 Fonte utilizada por Jacques Baud: Russia planning massive military offensive against Ukraine involving 175,000 troops, U.S. intelligence warns, por Shane Harris e Paul Sonne, 03 de dezembro de 2021, Washington Post.

https://www.washingtonpost.com/national-security/russia-ukraine-invasion/2021/12/03/98a3760e-546b-11ec-8769-2f4ecdf7a2ad_story.html 

*7 Fonte utilizada por Jacques Baud: SBU says 56 Russians in military actions against Ukraine since conflict began, 10 de outubro de 2015, Kyev Post.

https://www.kyivpost.com/article/content/war-against-ukraine/sbu-registers-involvement-of-56-russian-in-military-actions-against-ukraine-since-military-conflict-in-eastern-ukraien-unfolded-399718.html 

*8 Fonte utilizada por Jacques Baud: Названы небоевые потери ВСУ на Донбассе, 27 de outubro de 2018, Vest ua.

https://vesti.ua/strana/309880-nazvany-neboevye-poteri-vsu-na-donbasse 

*9 Fonte utilizada por Jacques Baud:

https://www.justice.gov/eoir/page/file/1008261/download 

*10 Fonte utilizada por Jacques Baud: В ВСУ заявили о 70% неявки во время осеннего призыва, 13 de dezembro de 2017, iPress;

https://ipress.ua/ru/news/v_vsu_zayavyly_o_70_neyavky_vo_vremya_osennego_pryziva_237367.html 

*11 Fonte utilizada por Jacques Baud: Why Are So Many Ukrainian Soldiers Committing Suicide?, por Mikhail Klikushin, 30 de junho de 2017, Observer.

https://observer.com/2017/06/ukraine-war-soldiers-suicide/ 

*12 Fonte utilizada por Jacques Baud: Fact Finding Mission Report – Ukraine, maio de 2017, refworld.

https://www.refworld.org/docid/593a581b4.html 

*13 Fonte utilizada por Jacques Baud: On the edge of war, por Prasanta Kumar Dutta, Samuel Granados e Michael Ovaska, 26 de janeiro de 2022, Reuters.

https://graphics.reuters.com/RUSSIA-UKRAINE/dwpkrkwkgvm/ 

#b Nota de Mykel Alexander: Sobre a questão do antissemitismo ver como abordagem inicial:

- Antissemitismo: Por que ele existe? E por que ele persiste?, por Mark Weber, 07 de dezembro de 2019, World Traditional Front.

https://worldtraditionalfront.blogspot.com/2019/12/antissemitismo-por-que-ele-existe-e-por.html

- Conversa direta sobre o sionismo - o que o nacionalismo judaico significa, por Mark Weber, 12 de maio de 2019, World Traditional Front.

https://worldtraditionalfront.blogspot.com/2019/05/conversa-direta-sobre-o-sionismo-o-que.html

- A Crítica de Acusação de Antissemitismo: A legitimidade moral e política de criticar a Judiaria, por Paul Grubach, 01 de setembro de 2020, World Traditional Front.

https://worldtraditionalfront.blogspot.com/2020/08/a-critica-de-acusacao-de-antissemitismo.html 

*14 Fonte utilizada por Jacques Baud: Avion détourné par la Biélorussie, sanctions de l’Union européenne : nos réponses à vos questions, 28 de maio de 2021, Le Monde.

https://www.lemonde.fr/international/live/2021/05/28/avion-detourne-par-la-bielorussie-sanctions-de-l-union-europeenne-posez-vos-questions_6081892_3210.html 

*15 Fonte utilizada por Jacques Baud: Hundreds march in Ukraine in annual tribute to Nazi collaborator, por Cnaan Liphshiz, 04 de Janeiro de 2021, The Times of Israel.

https://www.timesofisrael.com/hundreds-march-in-ukraine-in-annual-tribute-to-nazi-collaborator/ 

*17 Fonte utilizada por Jacques Baud: Ukrainian Nationalist Volunteers Committing 'ISIS-Style' War Crimes, por Damien Sharkov, 10 de setembro de 2014, Newsweek.

https://www.newsweek.com/evidence-war-crimes-committed-ukrainian-nationalist-volunteers-grows-269604 

*18 Fonte utilizada por Jacques Baud:

https://www.osce.org/files/f/documents/e/7/233896.pdf 

*19 Fonte utilizada por Jacques Baud: Podcast - Ukraine-Russie: c'est quoi cette histoire de nazis?, 10 de março de 2022, RTS.

https://www.rts.ch/info/monde/12928403-podcast-ukrainerussie-cest-quoi-cette-histoire-de-nazis.html


Jacques Baud é um ex-coronel do Estado-Maior, ex-membro da inteligência estratégica suíça, especialista em países orientais. É mestre em Econometria e pós-graduado em Relações Internacionais e em Segurança Internacional pelo Graduate Institute for International Relations em Genebra (Suíça). Ele foi treinado nos serviços de inteligência americanos e britânicos. Ele serviu como Chefe de Políticas para as Operações de Paz das Nações Unidas. Como especialista da ONU em Estado de Direito e instituições de segurança, ele projetou e liderou a primeira unidade multidimensional de inteligência da ONU no Sudão. Trabalhou para a União Africana e durante 5 anos foi responsável pela luta, na NATO, contra a proliferação de armas ligeiras. Ele esteve envolvido em discussões com os mais altos oficiais militares e de inteligência russos logo após a queda da URSS. Dentro da OTAN, acompanhou a crise ucraniana de 2014 e posteriormente participou de programas de assistência à Ucrânia. É autor de vários livros sobre inteligência, guerra e terrorismo, nomeadamente Le Détournement publicado pela SIGEST, Gouverner par les fake news, L'affaire Navalny. Seu último livro é Poutine, maître du jeu? publicado por Max Milo. 

Este artigo foi publicado por cortesia do Centre Français de Recherche sur le Renseignement, Paris. 

Fonte: Is It Possible to Actually Know What Has Been and Is Going On in Ukraine?, por Boyd D. Cathey, 02 de abril de 2022, The Unz Review – An alternative media selection.

https://www.unz.com/article/is-it-possible-to-actually-know-what-has-been-and-is-going-on-in-ukraine/

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